A chuva que a lona verde pendurada nos muros do quintal de Avelino Pereira deixa passar não é suficiente para distrair os cinco caçadores. Poucas são as palavras que trocam entre eles enquanto dividem os cartuchos que guardam nos bolsos das calças de ganga e das sweatshirts. Um deles, vestido a rigor, arruma os cartuchos no seu colete de caçador. A ideia é guardá-los de forma ordenada para que os intervalos entre os tiros sejam o mais curtos possíveis.
“Vamos lá?”, pergunta o homem do colete de caça, um líder para os outros caçadores. Estes, sem lhe responderem, seguem-no até ao fundo do quintal. Passam por duas galinhas encostadas a um canto com medo da chuva e um cão rafeiro que treme de frio, e só param aos pés de uma macieira de quatro metros de altura que, já de noite, só graças a um holofote consegue ser vista. Lá em cima, num dos galhos mais altos, está um ninho de vespas asiáticas castanho, oval e com um metro de altura.
Em menos de um minuto os caçadores vestidos à civil posicionam-se à volta da macieira, pedindo a opinião do líder. “Estou bem aqui?”. Este, depois de ter todos os atiradores distribuídos, escolhe um sítio e aponta a caçadeira ao ninho. “Aos três, hã? Um, dois três!”. Uma rajada de tiros rompe o silêncio deste fim de tarde de sexta-feira em Portela das Cabras. É uma das 58 freguesias de Vila Verde, a norte de Braga.
As vespas não tiveram tempo de escapar. O ninho foi sendo destruído aos poucos, acabando despedaçado no chão. “Agora já só dá maçãs!”, graceja um dos caçadores que bate em retirada antes dos companheiros. Enquanto repete o comentário, uma vespa voa na sua direcção e pica-lhe a mão com que segura um cartucho. “Aaaah!, puta! Olha aqui uma puta, pá! Filha da puuuuta! Olha as putas, olha, olha-as aí!”. Revoltado, abana a mão com força, como se desse para sacudir a dor, volta a aproximar-se da macieira e torna a disparar para a copa da árvore. Só descansa quando cai uma porção de maçãs ao chão, ainda verdes. O líder fica sozinho aos pés da árvore, para ver os estragos feitos. Ao lado das maçãs, vê centenas de vespas no chão, que ilumina com a luz do seu smartphone. Estão todas desfeitas, sem patas ou sem as asas.
As vespas que escaparam aos tiros acabam num voo de morte contra o holofote, onde morrem queimadas. “Olha as putas, são mesmo burras! Até fumega! Faz pféééééum!”, comenta o caçador que minutos antes fora picado. Os restantes homens juntam-se-lhe, em risos cheios e estridentes, competindo pela tirada que possa arrancar mais gargalhadas. O sino da igreja de Portela das Cabras bate as sete horas da tarde e toca de seguida o “Avé Maria”.
Lá atrás, debaixo da lona verde, está Avelino Pereira. Ali perto barracão de tijolo e cimento, estão arrumadas armações de ferro coloridas, que são usadas para decorar as ruas das vilas e cidades em dias de festa. Tem-nas separadas por estações. As do Verão, em forma de flores, decoram as festas que acontecem na altura do regresso dos emigrantes. As do Natal, nesta altura do ano, já estão todas distribuídas pelas aldeias e vilas vizinhas. À montagem das decorações festivas, Avelino junta a agricultura, à semelhança de grande parte dos seus vizinhos. A comida que não vai para a mesa pelo trabalho vem do quintal.
Encostado a uma carrinha, Avelino confessa estar aliviado. No dia anterior assustou-se quando viu que tinha um ninho de vespas asiáticas, também conhecidas como velutinas ou assassinas, na sua pequena quinta. Enquanto conduzia um tractor olhou para a sua macieira com o objectivo de sempre: admirá-la. “’Olha que linda macieira que eu tenho… Ah! Mas e aquilo ali é o quê?’”, pensou na altura. “’Queres ver que são as vespas assassinas?!’ Carago, eu não posso ter isso cá!’”. A sua mulher, Laurinda Pereira, garantiu que não voltava à horta enquanto não se acabasse com aquele ninho. “Eu gosto muito da macieira, mas agora se for preciso podem parti-la toda”, diz Laurinda.
Bastaram alguns telefonemas e um dia de espera para ter a situação resolvida. Quando os caçadores entraram para o lado de dentro dos portões de Avelino Pereira, já tinham no currículo o abate de 20 ninhos de vespas num espaço de três meses. “Este aqui foi fácil, nem passava dos cinco metros, foi quase uma brincadeira. Você devia era ter visto das vezes em que os ninhos estavam em eucaliptos ou em carvalhos. Aí estão sempre a mais de 30 metros. Já chegámos a levar praticamente 20 caçadores para dar cabo desses”, conta o líder, enquanto despe o casaco camuflado e devolve os cartuchos à caixa.
Arrancam a cabeça, patas, asas e tórax
“Para combatermos a vespa asiática temos, antes de tudo, de conhecê-la”, começa o engenheiro agrónomo e apicultor Paulo Mota. Fala para um grupo de 40 apicultores que responderam à sua chamada para uma reunião na Cooperativa Agrícola de Vila Verde, ocorrida à noite no primeiro dia de Novembo. Estão todos preocupados.
A vespa asiática é originária de países como a China, a Indonésia e Afeganistão. Nestas zonas as abelhas do mel já sabem como se defender delas. O mesmo não se pode dizer na Europa, onde este animal chegou em 2004 por via de um carregamento de madeiras da China para o porto de Bordéus, em França. Foi a partir dessa cidade costeira que partiu uma encomenda de produtos hortícolas para Viana do Castelo, o distrito mais a Norte de Portugal. Escondida entre alfaces e couves, veio a praga que está a levar os apicultores do Minho ao desespero. Com uma velocidade de propagação de 100 quilómetros por ano, se não for contida, a vespa asiática poderá cobrir Portugal do Minho ao Algarve até 2019.
“Elas não são mais fortes, mas têm uma forma de lutar que é completamente diferente das que são usadas pelas nossas abelhinhas”, explica a engenheira Catarina Ferreira, que se reveza com Paulo Mota na apresentação desta espécie. Sentado à frente do computador, o engenheiro mostra um novo diapositivo com fotografias destas vespas. São mais encorpadas do que uma abelha, têm o tórax negro e as patas amarelas. “Quando atacam as nossas abelhas, estas vespas mordem-lhes a cabeça, e atordoam-nas com um veneno. Depois levam-nas até a um galho alto e ali é que lhes arrancam a cabeça, as patas, as asas e o tórax. Só guardam o abdómen, que tratam com a saliva delas, para fazerem uma pasta, que depois levam para o ninho.” Durante a explicação, alguns apicultores riem-se artificialmente, como um pré-adolescente que não quer admitir que tem medo de um filme de terror. Outros mexem-se nas cadeiras, nervosos e apreensivos, com as sobrancelhas franzidas.
Não é para menos: não há um apicultor que não conheça os ataques das vespas asiáticas. Esta espécie predadora pode rondar durante horas uma colmeia à procura da melhor oportunidade para poder destruí-la. Mesmo que não consiga entrar nela, entretém-se a apanhar as abelhas que voltam a casa. Em apenas um dia, uma vespa asiática pode matar 50 abelhas. Só em Vila Verde estima-se que haja 10 ninhos activos, o que pode significar um total de 30 mil vespas. O cenário mais negro aponta para que no auge da sua actividade, de Agosto a Novembro, estes animais matem até 1 milhão e 500 mil abelhas diariamente só naquele concelho.
Miguel Alves, 34 anos, carpinteiro de profissão e apicultor por hobby, assiste à reunião impaciente, tomado pelo desgosto de que quando voltar a Portela das Cabras vai ter ainda menos abelhas vivas. “ Eu já não sei o que fazer mais. Uma vez cheguei a casa do trabalho e nem fui almoçar. Meti-me à volta das colmeias e pus-me a apanhar vespas com um camaroeiro. Depois esmaguei-as todas com uma pedra, só com a raiva que lhes tinha!”, conta ao grupo, aflito. “Eu sei que não adianta nada, mas é mesmo raiva que eu tenho!”.
O maior debate na reunião anda à volta da melhor maneira para destruir os ninhos. Existem três soluções, que devem ser aplicadas à noite, por ser a altura do dia em que a maior parte das vespas recolhe à base. A mais consensual é a do fogo, em que um ninho é queimado por um lança-chamas. Pode levar meia hora para reduzir a celulose do ninho a cinzas, e é preciso fazê-lo de forma a que o fogo não se alastre ao resto da árvore. Pode também ser injectado dióxido de enxofre a partir do buraco que serve de entrada ao ninho, de modo a que as vespas não consigam sair e morram intoxicadas. No entanto, existe o perigo de outros animais comerem as vespas mortas, ficando contaminados e colocando em risco ecossistemas inteiros. A terceira via é a dos tiros, em que vários atiradores disparam contra o ninho a partir de todos os ângulos possíveis. Pode ser a solução mais rápida, mas se por alguma razão demorar mais tempo do que o previsto, a probabilidade de algumas vespas fugirem é grande.
Há, no entanto, um problema comum aos três métodos: são todos ilegais. “Mas isso as leis são como as rotundas, são para serem contornadas!”, lança para o ar Carlos Alves, 35 anos, carpinteiro e apicultor tal como o irmão. “Isso pode ser tudo ilegal, mas eu não conheço nenhum apicultor que tenha coração para ver as suas abelhas a serem todas mortas e não fazer nada”, explica, enquanto esbraceja. Os restantes apicultores ouvem-no com atenção e fazem que sim com a cabeça. “Mas é para isso que cá estamos, Carlos”, responde-lhe Paulo Mota, num esforço para apaziguá-lo. Passa para um novo diapositivo e continua: “Bem, uma das razões pelas quais eu vos chamei até aqui foi para formarmos um grupo de trabalho para arranjar soluções para este problema, e para fazermos uma proposta de associação de apicultores…”
Catarina Ferreira levanta o braço e pede permissão para falar. “…Senhor engenheiro, desculpe interrompê-lo, mas eu acho que devemos voltar a falar da questão dos tiros, que não ficou bem resolvida.” O resto dos apicultores reage com uma gargalhada estrondosa, enquanto olham uns para os outros.
É que se há alguém que está por dentro dos tiros a ninho de vespas que têm acontecido diariamente no concelho de Vila Verde, esse alguém são os apicultores. Poucos são os que ainda saem à rua sem passarem o tempo com o olhar alto, fixo nas copas das árvores. Às vezes encontram ninhos sem querer, no caminho entre a casa e o trabalho. Outros, saem de propósito à procura do alvo. Como um caçador.
“Só ao tiro!”
“Eu não digo que os tiros são a melhor opção, mas também o que é que nos resta? Se dermos um tiro num ninho é verdade que podem escapar 100 vespas, tudo bem. Mas e se não fizermos nada? Escapam todas!”, desculpa-se Carlos, que não vê outra alternativa. “Eu não vejo mais ninguém no concelho de Vila Verde a mexer um dedo para tratar deste assunto. Se as autoridades não fazem nada, então só sobram as acções dos populares!”.
A reunião terminou com duas listas de nomes de apicultores: uma para um grupo de trabalho que tentará agir como lobby junto das autoridades locais e outra para formar uma associação de apicultores da zona dos rios Cávado e Ave. À medida que os nomes eram avançados, Carlos repetia: “Não faz mal tentar, mas de certeza que ninguém vai fazer nada para além de nós. Nem a câmara, nem a Protecção Civil, nem os bombeiros, nem nada! Isto vai ter de chegar a Lisboa, lá aos mouros, e aos grandes produtores do Alentejo para dar nalguma coisa. Enquanto formos só nós aqui, vão ver que vai ficar tudo na mesma! Só ao tiro!”
Na semana anterior, o Correio do Minho dava conta de um comunicado da Câmara Municipal de Vila Verde em que esta anunciava que estava “a elaborar um plano eficaz de combate a esta praga que ameaça o desenvolvimento da apicultura local”. Na mesma nota, o município deixava ainda um pedido à população: “[Se] descobrirem os ninhos não atuem por conta própria no intuito da sua destruição.”
Fala-se, mais uma vez, dos tiros. “O procedimento é errado”, avalia Patrício Araújo, responsável pela pasta do Ambiente na câmara de Vila Verde. Para o vereador, mais importante do que combater as vespas asiáticas, a prioridade é desmistificar esta espécie. “Algumas pessoas adoptaram a designação de vespas ‘assassinas’ para se referirem a esta espécie, e é importante antes de tudo esclarecer que é um nome irreal. É assassina para as abelhas, para o Homem não, a não ser que haja o caso de uma alergia”, explica. “A terminologia é absolutamente errada.”
A insistência de Patrício Araújo não surge por acaso: este Verão, numa das poucas situações em que autarquia, com o auxílio dos bombeiros voluntários, tentou eliminar um vespeiro, o resultado não foi o que se esperava. Com o auxílio de uma auto-escada dos bombeiros, um funcionário da câmara foi erguido até um ninho de vespas asiáticas que estava a 30 metros de altura. Quando empunhou um lança-chamas contra o alvo, um enxame atacou-o. O fato de apicultor que vestia não foi suficiente para o proteger, e após o ataque teve de ser internado num hospital do Porto. As análises provaram que era alérgico às picadas de vespas. “Ele chegou a estar mesmo mal”, comenta-se um pouco por toda a Vila Verde, que passou então a apelidar estas vespas de “assassinas”.
O comandante dos Bombeiros Voluntários de Vila Verde, José Alberto Lomba, garante que enquanto não houver material próprio para o combate às vespas nenhum dos seus homens sairá do quartel para responder a esses pedidos. “Um fato de apicultor não serve de nada se o gajo lá por baixo só estiver de cuecas, não é?”, adianta o bombeiro, que também foi apicultor entre 1983 e 1992, chegando a produzir 3 toneladas de mel por ano. É por isso que quando fala de abelhas e vespas fá-lo com fluência, desenhando num papel à medida que vai avançando explicações. Invariavelmente, todas elas redundam num dos seus maiores desgostos, aquele que o fez deixar a apicultura: a varrose.
A varrose é um parasita que entra nos ovos das abelhas que ainda estão por nascer. Do tamanho de uma pintinha, como a que o comandante desenha com uma esferográfica azul num papel a título de ilustração, a varrose impede que a abelha nasça saudável, sem patas ou asas. Incapaz de combater a praga, o bombeiro largou a apicultura. “Aquilo desgostou-me muito. Era preciso estar muito em cima daquilo e eu não consegui. Acabei por desistir.”
Governo dos homens, desgraça das abelhas
Augusto Gomes e António Pimentel são os únicos clientes da pastelaria São Salvador, em Portela das Cabras, que vestem gravata. O resto das pessoas sentam-se calmamente, com os casacos pousados nas costas das cadeiras, enquanto mexem o café sem pressa. É sábado de manhã e a chuva que no dia anterior molhava os caçadores no minifúndio de Avelino Pereira ainda cai.
Mal se sentam numa das cadeiras do café, Augusto e António abrem as bolsas que levam a tiracolo e cada um tira uma Bíblia. São testemunhas de Jeová. Depois de trocarem algumas palavras entre eles, perguntam aos clientes nas mesas ao lado se lhes podem dar uma palavrinha.
À medida que vai folheando páginas da Bíblia, António, 28 anos, diz algumas passagens de cor, apenas ocasionalmente olhando para o livro de capa dura. Faz questão de olhar o interlocutor nos olhos, num esforço para conseguir que este siga a leitura. Se vê confusão do outro lado, faz questão de explicar tudo de novo, de forma mais cuidada e acessível.
“Vejamos a Bíblia sagrada, Jeremias, no capítulo 10, versículo 23, que diz assim: ‘Bem sei, ó Jeová, que não é do homem terreno o seu caminho. Não é do homem que anda o dirigir o seu passo’. O que é que acha que isto quer dizer?”. António nota que não foi compreendido. Explica, com calma: “Isto quer dizer que o Homem pode andar e tomar decisões, mas não lhe cabe a ele dirigir os seus passos com sucesso. Tem de seguir os ensinamentos de Deus, que é Jeová. Foi ele que construiu o mundo, é ele quem sabe como ele funciona melhor.”
Como explicam a praga das vespas asiáticas em Vila Verde? Augusto, 42 anos, larga o guião da Bíblia e arrisca uma solução própria. “Talvez o melhor seja tentar arranjar uma maneira aqui, em Vila Verde, de recriar o habitat próprio desta espécie”, arrisca. “Mas é bastante difícil, porque esse habitat existe, mas não é aqui. Se existe só na Ásia, foi porque Deus assim o quis.”
António volta ao profeta Jeremias para reforçar o último argumento de Augusto. “Viu o que aconteceu aqui? O governo dos homens quis substituir-se ao governo de Deus, e o resultado é o caos. Qual era a necessidade de importar madeiras da China, se é lá que elas pertencem? Bastou uma acção do Homem, que voltou a não obedecer a Deus, como Adão e Eva, para lançar o caos.” António e Augusto nunca tinham ouvido falar dos caçadores que disparam contra os vespeiros que encontram nas árvores do concelho. Augusto solta-se e diz: “Aos tiros? Mesmo? Ai, meu Deus!”