Pavlo Sadokha chega à esplanada do Sabores de Outono, um café no Lumiar, Lisboa, em passo apressado. Olha para o telemóvel, escreve uma mensagem, mas, ao longo de mais de uma hora de conversa, o aparelho não irá parar de vibrar. As suas funções como presidente da Associação de Ucranianos em Portugal obrigam-no a estar atento às solicitações de uma comunidade que, actualmente, é composta por cerca de 60 mil pessoas, das quais 15 mil são já cidadãos portugueses.
Faltam seis dias para as eleições para o Parlamento Europeu. E outros tantos para as eleições presidenciais na Ucrânia – um acto eleitoral reclamado na Praça da Independência (Maidan) ao longo de meses, agendado pouco depois da fuga do Presidente Viktor Ianukovich e da deposição do Governo por si nomeado em 2010.
Pavlo sorri perante a coincidência dos escrutínios. Ele não esteve na Praça da Independência quando esta se transformou num acampamento de protestos, a partir de Dezembro de 2013, nem assistiu de perto aos piores episódios de violência ocorridos nos 23 anos de independência do país. Mas falou todos os dias com os pais e com a irmã, que continuam a viver em Lviv, na zona Oeste do território; procurava estar sempre informado sobre o que ia acontecendo na Praça; organizou encontros e manifestações em várias cidades nacionais; angariou fundos destinados aos manifestantes acampados no centro de Kiev. Aquilo que começou como um protesto de estudantes universitários contra a recusa de Ianukovich em firmar um acordo de comércio livre com a União Europeia (que certamente colocaria a Ucrânia numa posição privilegiada para se candidatar a membro da família europeia), culminou num confronto contra um regime onde grassava a corrupção e o autoritarismo. “Quando Ianukovich não assinou o acordo com a UE, todos perceberam que a Ucrânia não poderia ter qualquer futuro. E que ele pretendia fazer aquilo que a Rússia há muito deseja: anexar a Ucrânia, fazer uma nova União Soviética, um novo império”, explica.
Pavlo chegou a Lisboa em 2001. Portugal acolhera já alguns dos seus amigos, que o receberam no aeroporto e em casa de quem chegou a viver durante algum tempo. Era-lhe impossível continuar a sobreviver na Ucrânia, que então, presidida por Leoni Kutchma, se debatia com uma crise económica e social. Licenciado em Economia, trabalhava num banco, ganhava 50 dólares por mês. “Eu ainda ganhava bem, se compararmos com a média dos salários nessa altura.” Com um sobrinho deficiente que necessitava urgentemente de uma cirurgia orçada em 15 mil dólares, Pavlo não hesitou e decidiu emigrar. (O êxodo de ucranianos, sobretudo para a Europa, está patente na demografia do país: à data da independência, a Ucrânia tinha 52 milhões de habitantes; em 2014, contam-se 46 milhões.)
Em Portugal, o seu primeiro emprego foi na cozinha de um restaurante. Seguiu-se um período na construção civil (“nas obras, onde muitos imigrantes trabalham”), que terminou abruptamente quando Pavlo percebeu que não iria ser pago, e, finalmente, o Serviço de Jesuítas aos Refugiados conseguiu arranjar-lhe o emprego que mantém desde 2002, numa empresa de comércio, onde trabalha como economista com a sua licenciatura já reconhecida em Portugal.
Pouco depois da Revolução Laranja, desencadeada após observadores internacionais terem detectado que Viktor Ianukovich, então candidato à Presidência nas eleições de 2004, estava envolvido na manipulação de votos, Pavlo casou com uma portuguesa. Conheceram-se na igreja de São Jorge de Arroios e ali casaram numa cerimónia católica e greco-católica, de rito Bizantino.
Voluntários para a guerra
Os jornais do dia noticiam que o Presidente russo, Vladimir Putin, ordenou a retirada das suas tropas das zonas de fronteira com a Ucrânia, mas Pavlo não acredita. “É mentira, faz parte do jogo dele.” Falara há poucas horas com os pais, septuagenários, que lhe expressaram o medo da eclosão de uma guerra civil. “Felizmente, Lviv ainda é uma cidade calma, mas surgem já informações de que alguns grupos terroristas russos querem destabilizar a zona Oeste do país. Para tal, basta fazer explodir uma fábrica, por exemplo. As pessoas têm tanto medo que começam a recear estar junto a uma multidão na rua. A ameaça terrorista é muito real, sobretudo depois do que aconteceu no Leste.”
Nas conversas telefónicas com os pais, Pavlo tenta não falar muito sobre a iminência de uma guerra civil. Mas o receio começou a alastrar-se entre a comunidade imigrante ucraniana. “Ainda ontem ajudei uma senhora a escrever um termo de responsabilidade para trazer os sobrinhos para Portugal”, diz. A ameaça tem tido também outros efeitos. Ainda antes do referendo na Crimeia, que culminou com a anexação da península à Rússia, muitos ucranianos manifestaram a vontade de regressar ao seu país para lutar contra a intervenção russa. Pavlo Sadokha decidiu então organizar uma lista de voluntários que, neste momento, conta já com oito dezenas de homens. Entre eles, está também Pavlo. “Eu nunca matei ninguém, nem estive na tropa. Mas infelizmente os humanos ainda não encontraram outra forma de resolver conflitos. Temos de acabar com esta injustiça.” A associação já fez os devidos contactos com a Guarda Nacional ucraniana. Por ora, estes combatentes ainda não são necessários, mas estão de prevenção. E a qualquer momento podem partir para a Ucrânia. “Estamos prontos para lutar”, afirma, notando, contudo, que a estratégia de Putin “é manter o país num clima de confusão”. Isso mesmo, observa, é notório no Leste do país: “Aquelas acções terroristas pretendem criar um clima que não permita à Ucrânia realizar os seus programas de crescimento económico e social. E esse é o maior perigo.” De que é que Putin tem medo? “Que o vírus da revolução alastre para a Rússia.”
Não foi apenas a mobilização de voluntários dispostos a combater ao lado da Guarda Nacional que surpreendeu Pavlo, mas também a união da própria colónia imigrante. A associação possui 14 sub-delegações espalhadas por todo o país, mas em muitas acções apareceram pessoas oriundas de cidades onde Pavlo julgava não existirem ucranianos, como Castelo Branco e algumas povoações algarvias. “Muitas saíam do trabalho e vinham juntar-se a pequenas manifestações em Lisboa, regressando à noite a casa.” Nessas iniciativas, feitas nos centros das principais cidades do país, a comunidade rezava pelo seu país e pelos mortos da Praça da Independência, cantavam, proferiam pequenos discursos. Uns levavam bandeiras, outros cartazes com palavras de ordem: “Portugal ajuda-nos a parar o ‘autoritarismo moderno’ na Ucrânia”; “Guerra Não. Putin fora da Ucrânia”. Em todos estes encontros, fez-se uma recolha de donativos em dinheiro. Isso permitiu à associação juntar “mais de 30 mil euros”, doados à igreja greco-católica, que prestava apoio no acampamento no centro de Kiev ao Sector Direito e a outras organizações presentes nos protestos. “Continuamos a angariar dinheiro”, acrescenta Pavlo, “e enviamos para a Guarda Nacional”.
Quando ainda decorriam os confrontos em Maidan, a propaganda russa difundiu largamente a informação de que os manifestantes eram, na sua maioria, nacionalistas radicais. Um dos alvos mais atingidos foi o Sector Direito, que, sublinha Pavlo, é composto maioritariamente por cidadãos oriundos do Leste, de língua russa. “O nacionalismo tem significados diferentes na Ucrânia e na Rússia. Às vezes, é-me difícil explicar isso aqui. Até os comunistas portugueses não têm ideia de como são os comunistas ucranianos. No Parlamento, deu agora entrada um projecto de lei para proibir o Partido Comunista na Ucrânia – não é por causa do seu programa, mas porque eles não são mais do que a Quinta Coluna da Rússia.” E prossegue: “Hoje, não posso dizer que existe um puro nacionalismo ucraniano. Existem, sim, forças que querem combater a corrupção. A Rússia sempre quis dividir a Ucrânia entre aqueles que são nacionalistas pró-ocidentais e os nacionalistas pró-russos. Por isso, através do Governo e do Presidente, introduziu leis como aquela que instituiu o russo como a segunda língua oficial. Isso não era necessário porque nunca houve discriminação da língua russa. Em todas as famílias há sempre alguém que é de origem russa ou só fala russo.”
Não é apenas por presidir à Associação de Ucranianos em Portugal que Pavlo entende ser necessário dar a conhecer a história do seu país – cada ucraniano, defende, deve fazê-lo nos seus países de acolhimento. “A Ucrânia sempre foi controlada pela Rússia. Até agora não tinha voz própria. E na diáspora sentimos a responsabilidade de informar sobre o que vai acontecendo no nosso país. Até porque a Rússia tem mais meios para difundir o seu ponto de vista pelo mundo e a Ucrânia não tem dinheiro para fazer o mesmo”.
“O futuro em Portugal”
Na Embaixada, a lista de inscritos para votar nas eleições do dia 25 de Maio já ultrapassou o número de votantes para o Parlamento ucraniano, em 2012. As sondagens mais recentes indicam que Petro Poroshenko, um empresário que já ocupou diversos cargos ministeriais, será o vencedor, com grande vantagem sobre Yulia Timoshenko. Pavlo Sadokha acredita que as sondagens reflectem já os resultados eleitorais do próximo Domingo. Contudo, sabe que o combate contra a corrupção será uma das batalhas mais difíceis para o futuro líder do país. E não tem ilusões sobre as “décadas” que serão necessárias para debelar o problema. “Se um funcionário do Estado sabe que, ao assinar documentos falsos, pode ganhar dinheiro extra com isso, eu não acredito que este tipo de mentalidade mude de um dia para o outro.”
Há ainda outro problema, igualmente antigo: “Os políticos que agora se candidatam são da geração da União Soviética. O Petro Poroshenko é um político mais europeu do que pró-russo, mas mesmo assim há uma enorme desconfiança.” Apesar de acreditar nos resultados que as sondagens dão a Poroshenko, Pavlo salienta que “os ucranianos estão indecisos, não sabem quem escolher”.
No mesmo dia, 15 mil portugueses de origem ucraniana poderão votar nas eleições para o Parlamento Europeu. Pavlo está atento aos programas de cada um dos 16 partidos, já aceitou reunir com alguns, sabe as posições que tomaram face aos acontecimentos na Ucrânia. Nos últimos dias, enquanto membro da direcção do Conselho Internacional das Comunidades Ucranianas, redigiu uma carta dirigida aos imigrantes que vivem na Europa, apelando a que votem nos partidos que apoiaram publicamente as manifestações anti-Ianukovich e anti-Putin. “Sei que a Ucrânia não vai ser um paraíso, mesmo que termine este conflito com a Rússia. Mas acho que os imigrantes ucranianos podem ajudar o seu país.” E “ajudar” significa também dar votos a quem se lembrou deles, sobretudo durante os meses de violência na principal praça de Kiev.
Pavlo gostaria de ver um dia a Ucrânia como Estado-membro da União Europeia. “Tanto a Europa como o meu país poderiam ganhar com isso”, diz, apontando que também a Ucrânia perfilha a filosofia cristã. “Os valores são iguais.” Mas aquilo que mais valoriza é a ideia de liberdade, de um território sem fronteiras. “Quando fui pela primeira vez buscar os meus pais a Lviv, fi-lo de carro e atravessei toda a Europa. Esse sentimento de passar uma fronteira era algo difícil para mim, deixava-me nervoso. Mas quando passei de um país para outro quase sem notar, percebi esse sentimento de liberdade, um sentimento que é muito mais importante do que as questões económicas”.
Pavlo acredita no projecto europeu, embora lamente as situações em que a Europa “parece não estar unida”. “Há mudanças que devem ser feitas, mas a união é muito importante.” Neste âmbito, diz não compreender aqueles que, em Portugal, defendem a saída do Euro e da União Europeia. No entanto, tem uma suspeita: “Acho que os russos continuam a influir em Portugal, como o fizeram em 1974, e divulgam a ideia de que se deve sair da Europa.” Aquilo que Portugal deveria fazer, entende Pavlo, “é mostrar mais os dentes à Europa, sobretudo aos países que acabaram por ser favorecidos com a crise portuguesa”.
Para este economista, o Governo poderia ter procurado outras soluções no pacote das medidas de austeridade, uma vez que “não era necessário seguir todas as recomendações da troika”. “Por exemplo, ao aumentar os impostos, reduziu qualquer estímulo à economia”. Um dos efeitos das políticas de redução salarial foi a saída de muitos imigrantes ucranianos – não para regressarem à sua terra natal, mas para procurarem países europeus onde ainda há folgas no mercado laboral, como Inglaterra e Alemanha. Esta situação revelou algo inédito: muitos destes ucranianos expressaram já a vontade de ficarem definitivamente em Portugal. Compraram casa, casaram, têm filhos, criaram raízes. A crise levou-os a procurar novamente trabalho noutros países. Mas desta vez, já não enviam divisas para a Ucrânia, mas para Portugal. “Vêem o futuro em Portugal.”