Pilatos e os animais perdidos

Há centenas de animais à solta na serra algarvia que destroem hortas e culturas em busca de comida. Pertencem a um homem que, apesar de já ter sido condenado três vezes em tribunal, continua a não cuidar do gado. Todos o conhecem como Rui “Pilatos”.

Rita Ferreira

Outubro 2013

É o mais pequeno dos cães, o Boneco, que está treinado para ir atrás dos animais. É ele que faz com que Maria Leonilde saia da cama em sobressalto. Não é que no meio do sono ela não tivesse já pressentido o perigo a aproximar-se da casa. Afinal, há dez anos que não dorme descansada. O ladrar do cão só lhe confirma que o pesadelo continua real.

“No Natal de 2011 dormiram na minha horta 25 vacas e oito porcos. Destroem tudo. Alfaces, brócolos, melancia, melão, batata doce, batata redonda, não sobra nada”, conta Maria Leonilde, 73 anos, abanando a cabeça e encolhendo os ombros. Não é que tenha desistido de lutar. Quando apanha os animais, pega no pau de dois metros com um bico na ponta que o marido lhe fez, se for de noite leva a lanterna, e segue por um caminho de lama durante quase dois quilómetros para levar as vacas, ou os porcos, ou as cabras, ou as ovelhas de volta à Herdade da Corte, onde elas pertencem e de ondem saem à procura de comida. “No dia de Ano Novo fui levar 15 porcos até à fonte de Barreira. Quando voltei a casa já lá tinha três outra vez a comer a horta.”

Manuel Neves senta-se à mesma mesa onde Maria Leonilde espalha dezenas de fotografias que registam uma década de problemas. “Até há dez anos ele só tinha ovelhas. Da primeira vez que vieram as vacas, colocou uma vedação eléctrica na quinta, mas depois acabou-se a bateria e o gado ficou todo à solta: vacas, porcos, ovelhas e cabras”, explica Manuel, 53 anos, mecânico e agricultor nas horas vagas. “Ele” é Rui Pires Bernardo, conhecido pela serra algarvia como Rui “Pilatos”. É ele o alegado dono de centenas de animais que já arruinaram vezes sem conta a horta de Maria Leonilde; é ele o suposto responsável pela centena de cabras que há pouco mais de duas semanas destruíram a vedação de arame farpado que Manuel Neves tinha colocado no terreno e deram cabo dos medronheiros que iam servir para a produção de aguardente.

Manuel fecha a cara. “Gastei seis ou sete mil euros a vedar o meu terreno. Este mês as cabras partiram aquilo tudo. Isto é uma angústia. É como chegar a casa e ver a casa assaltada. Dá vontade de chorar, de gritar!”, desabafa. Leonilde acrescenta: “Dá vontade é de o esganar, porque ele ainda se ri e goza com a gente.”

Porcos que comem vacas

Está a chover na serra do Caldeirão e a estrada que atravessa a Herdade da Corte, situada nos concelhos de São Brás de Alportel e de Loulé, ficou enlameada. Manuel conduz a carrinha de caixa aberta com perícia, sentada no banco de trás Maria Leonilde vai chamando a atenção para a paisagem. Os primeiros animais a aparecer são as ovelhas. Umas dezenas pastam calmamente sem que ninguém as controle e sem que exista qualquer vedação para as reter ou proteger.

Mais à frente encontra-se um barracão com uma cerca de madeira e umas cabras lá dentro. “Olha, guardou as cabras, deve ter sido porque andámos aqui com um jornalista na semana passada, porque elas estavam todas à solta”, repara Manuel. Encostada a uma árvore, uma mota com um capacete pendurado. “É do pastor”, afirma Leonilde. Mas sinal dele, nenhum.

O que se vê na herdade são animais e abandono. O que resta de um poço marca o ódio que muita gente que vive ali à volta tem por Rui “Pilatos”. Pintado com trincha e tinta branca, lê-se uma frase num mau português mas de ameaça perceptível: “S. RUI PORCO. OS TEUS CORTA TANBÉN CORNOS”.

Há máquinas enferrujadas, uma casa escavacada e há o que resta de uma vedação eléctrica, que, segundo Manuel Neves, pouco tempo funcionou. A vedação consiste em dois fios da grossura de cordas de estender a roupa atados a umas árvores, a uma altura de pouco mais de um metro.

Já se andou alguns quilómetros e não se vêem as vacas. Mas há sinais de destruição. As árvores parecem cogumelos. Figueiras e amendoeiras só têm folhas intactas na parte de cima, como se fosse um capacete. Daí para baixo estão todas comidas. Os muros que já foram muros estão deitados abaixo, os terrenos revolvidos. Ao passar pelas casas habitadas e pelas hortas nota-se que as pessoas se vão defendendo como podem. Há chapas de zinco a tapar entradas, há arame farpado que não resiste à fome das cabras, mas há sobretudo terrenos ao abandono.

Chegados a Fonte Filipe, já no concelho de Loulé, Leonilde e Manuel olham com tristeza para os hectares cheios de canas e plantação alta deixados ao deus-dará. “Isto aqui era tudo hortas. São terrenos férteis, com água muito boa, plantados por pessoas idosas que acabaram por deixar tudo, depois de os animais comerem pereiras, macieiras, tudo o que era plantado e semeado. As pessoas desistem”, conta Leonilde enquanto olha com tristeza pelo vidro meio embaciado da carrinha.

Ao fazer o caminho de volta, numa curva mais apertada, eis que aparecem as vacas no caminho. São umas dezenas. Estão magras e em cima de algumas pousam os pássaros “carraceiros”, sem que elas disso façam caso. Costumam andar mais junto ao ribeiro, por isso não se viam, mas nos poucos minutos que durou a viagem logo apareceram junto à estrada. Mais uma vez, gente que é gente, nada. Não há pastor que os guarde ou lhes dê comida. A chuva veio trazer mais pasto aos animais que nesta altura do ano têm mais com que se alimentar e se mantêm por isso mais distantes das hortas. O facto de Rui “Pilatos” ter feito desaparecer os porcos também aliviou a vida de Leonilde e Manuel. Pelo menos por agora.

É no final do Verão que os animais mais sofrem e mais atacam as hortas. Como não há quem os alimente, eles partem em busca de comida, muitas vezes já debilitados. Não é preciso ser especialista para ver que as vacas estão magras, magras. Houve alturas em que morreram por ali. “Os porcos morriam, as vacas morriam aí e os porcos comiam-nas. Entravam nas vacas por um lado e saíam pelo outro. Eu vi porcos a saírem das vacas todos ensanguentados”, conta Manuel. Leonilde mostra fotografias de porcos com as costelas à vista. Fotos de porcos que, de estarem sem forças, não se mexiam e porcas que comeram as crias. Este cenário é confirmado pelo veterinário municipal. Assim que ouve o nome de Rui “Pilatos”, Joaquim Mendonça ri com alguma bonomia. “Quando eu estava no matadouro do Algarve tivemos de matar os porcos todos dele porque tinham comido uma vaca, eram necrófagos. Ele sempre teve problemas, teve casos de brucelose, tem animais mal alimentados, sem infraestruturas adequadas, sem condições de bem estar. Já lá andei com a GNR, que se sente impotente, a delegada de saúde tem conhecimento da situação, fizemos um relatório para a Direcção Geral de Veterinária…” Mas os problemas continuam. “O último relato que tive foi de uma professora que andava a passear o cão ali na zona do Bico Alto, quando encontrou uma cabra caída. O animal era incapaz de se levantar e viemos então a saber que o bicho era dele, tinha-se perdido do rebanho. Quando o confrontámos ele ainda disse que processava a senhora por invasão de propriedade!”, relata o veterinário.

Rui “Pilatos” queixou-se. “Ele chora muito, chorava na câmara municipal a dizer que aquele era o sustento dele. Um dia veio ter comigo e disse-me que havia cães vadios a atacar-lhe o rebanho e que eu tinha de fazer alguma coisa.” Enquanto o veterinário conta esta história, sentado na entrada do consultório, entra José do Carmo, que ao ouvir um pouco da conversa logo atira: “O Rui ‘Pilatos’? Ui! As pessoas queixam-se e ele leva leitões, borregos e cabritos para elas se calarem, mas ao pastor já lhe têm chegado a roupa ao pêlo!”

Corvos no ar, sinal de azar

Não é só na Herdade da Corte, propriedade de uma empresa que um dia ali quis construir um aldeamento e um campo de golfe que ficaram na gaveta, que Rui “Pilatos” tem animais. A quinze quilómetros de distância, por caminhos de asfalto e de terra batida, pouco aconselháveis em dias de chuva e nevoeiro, toda a gente sabe de cor o nome do homem que ali descarregava cabras e ovelhas, muitas já doentes. “Chegaram a ser quatrocentas cabeças, vinham em camiões, algumas delas quando saíam nem se aguentavam em pé”, conta Francisco Fontes, recordando o ano de 2011. O pior ano.

Para as cerca de quatro centenas de animais, largadas num terreno sem vedação, havia um pastor, um romeno que levava com a ira das pessoas a quem os animais destruíam hortas e jardins. “O homem só dizia que não conseguia dar conta do gado. Era um desgraçado, chegámos a dar-lhe roupa e comida”, relata Francisco.

Até que os corvos começaram a rondar, os cães chegaram a casa com ossos grandes na boca, o mau cheiro tornou-se perceptível. As cabras tinham começado a morrer. Veio o veterinário, veio a GNR, até que “algumas pessoas o abordaram de forma mais forte”. Ele transferiu o gado e há quase um ano que não há animais por ali. “Foi um ar que se lhe deu. Neste momento não se ouve nem se vê.”

Processos, processos

Rui Pires Bernardo tem um processo a correr na Direcção-Geral de Veterinária do Algarve, que se reserva o direito de sigilo enquanto tudo está em contencioso jurídico. Mas a justiça já o condenou por três vezes.

Em 1997 foi condenado ao pagamento de uma indemnização pelos danos causados por um rebanho em árvores e plantações na Herdade da Apra, num processo aberto pelo proprietário. Em 2011, o Juízo Criminal de Loulé condenou-o por dois crimes de dano, obrigando-o a pagar, a Manuel Neves, quatro mil euros. Manuel nunca viu um cêntimo. Já este ano, nova condenação, desta vez pelo Tribunal de Faro, a pagar 1700 euros a Maria Leonilde. Nada recebeu. Mas não desistiu e fez nova acusação por danos causados na sua horta, que foi invadida por vinte vacas e oito porcos. “Onde houver um buraco eu vou atrás”, diz Maria Leonilde, que, apesar da persistência, sabe que a vida que tinha antes já não volta. O marido está enfiado na cama com uma depressão que não passa, ela deixou de cultivar com a mesma alegria. “Quero fazer-me de forte mas ando sempre ansiosa”, desabafa, enquanto arruma nas micas as cartas que escreveu para o Comando Territorial da GNR de Faro, para a Direcção dos Serviços Veterinários do Algarve, para a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. Tudo sem resposta. Promoveu ainda um abaixo-assinado no qual reuniu quase cem assinaturas e que entregou no Ministério Público. Não descansa enquanto não vir Rui “Pilatos” castigado pelo mal que lhe tem causado.

Ouve-se o barulho de uma mota. “Aquilo é o carteiro?”, pergunta em sobressalto Maria Leonilde. Manuel responde afirmativamente.

- É carta registada? - grita Leonilde enquanto se aproxima do carteiro em passo acelerado.

- É. - responde o carteiro.

- E é do tribunal?

- É.

Rui “Pilatos” não apareceu durante os dias em que estivemos em Alportel. Nenhum dos números de telemóvel que nos foram disponibilizados estão activos.