O que é que aconteceu, Mário?

Já tinham passado dois anos desde que se separaram, mas Mário não conseguia esquecer Vera. Ela refez a vida e juntou-se com um bombeiro. Mário enviou uma mensagem a dizer “Vou dar-te trabalho”, e o monte de São Cristóvão ardeu.

João de Almeida Dias

Setembro 2013

Bzzt-bzzzzt, bip-bip. Uma mensagem de telemóvel recebida durante a madrugada. “Vou dar-te trabalho”, leu Vera, com os olhos ainda a refazerem-se do sono. Era 21 de Agosto e, quando visse enfim o mês pelas costas, chegar-lhe-iam dois ou três dedos para contar as vezes que tinha visto o seu namorado, Costinha. Este passava a maior parte do tempo no quartel dos Bombeiros Voluntários de Resende, entre um alarme e outro.

Enquanto Vera tentava ainda decifrar o sentido da mensagem do ex-namorado, Mário, Costinha estava ao volante de uma ambulância. Não era nenhum fogo: estava a voltar de Peso da Régua, em Vila Real, aonde tinha levado alguns doentes de Resende para fazer hemodiálise. Ao longo do caminho, lá ao fundo da encosta, o Douro empresta algum azul a um cenário que não podia ser mais verde. Para Resende, o concelho que tem a taxa de desemprego mais alta no país, 29%, o rio é mais do que um rio – é o pão possível na mesa.

Quando voltou ao quartel, Costinha soube que lavrava um fogo em São Cristóvão – uma zona de serra, situada a 15 minutos de Resende, onde imperam curvas e contracurvas em estradas apertadas. Com o alarme a tocar, Costinha pensava o mesmo que lhe passa pela cabeça antes de qualquer incêndio: “Só espero que seja pequeno que é para eu voltar rápido para o quartel.”

No topo do monte de São Cristóvão o fogo queimava a superfície rasa. O mato é rasteiro e as árvores, poucas, estão todas arrumadas para os cantos. Sem obstáculos, o fogo espalha-se como água, ajudado pelo vento que, do mal o menos, faz rodar as enormes ventoinhas eólicas dia e noite. Em menos de nada, estão queimados 300 hectares – quase o mesmo número em campos de futebol.

Mãos no fogo

“Fogo? Eu não botei fogo nenhum”, diz Mário, sentado à porta de sua casa, na aldeia de Vila Nova, no concelho vizinho de Resende, Cinfães. E a mensagem que Vera diz ter recebido, e que Costinha dizia ser para ele? “Mensagem? Eu não mandei mensagem nenhuma.” Mário fala com os olhos postos no chão e não dá mais respostas. O advogado, depois de ter visto que o seu cliente fora manchete do Correio da Manhã, deu-lhe ordem para não falar a jornalistas.

Mário está sentado num degrau baixo, com as costas curvadas para melhor chegar às vagens de feijão frade que tem aos pés. Os ombros estão quase à mesma altura dos joelhos. Calmamente, rasga as vagens e deposita, um a um, os feijões num saco de plástico. É um jovem esguio de 23 anos, bem parecido, com a sorte de até a camisola de alças cinzenta, as calças de fato de treino pretas e as meias brancas que as prendem nos tornozelos lhe ficarem bem. Lá por baixo disto tudo, no pé direito, esconde a pulseira electrónica que confirma a prisão domiciliária – medida de coacção determinada pelo juiz por Mário ser suspeito de ter ateado vários incêndios.

Do lado de fora do portão está Daniel, cinco anos mais velho do que Mário. São irmãos. Seriam iguais, não fosse o facto de Daniel ter mais 15 quilos. “Oh amigo, não vale a pena, você está aqui a fazer o seu trabalho, é a sua arte, tudo bem, mas nós também temos a nossa. E não vale a pena insistir que o meu irmão não vai falar mais.”

É pedido a Daniel que fale sobre o irmão, já que este não quer falar. “Olhe, eu não vivo cá, estou cá só de férias. Não posso falar muito do meu irmão porque não venho cá muitas vezes”, diz, perante os ouvidos indiferentes de Mário. Na vivenda ao lado, uma mulher tenta, num esforço vão, apanhar a conversa.

“Eu quando venho cá mal o vejo. Quando chego a casa ele já não está cá. Só sei que ele anda por aí com umas miúdas, dá umas voltas… Quando ele volta já eu estou a dormir, portanto não lhe posso estar a dizer como é que ele é. Você não tem familiares que não conhece bem? Pronto, então é isso. Se calhar não mete as mãos no fogo por eles. Eu tanto posso meter as mãos no fogo pelo meu irmão como posso não meter.” Mário continua de cabeça baixa, e já descascou metade dos feijões.

“Vá, já chega, amigo, fim de conversa”, remata Daniel. “Adeus.”

O namoro começou no portão da escola

Não é feita nenhuma injustiça a Vila Nova, onde Mário vive com os pais, se descrevermos uma aldeia composta por uma estrada, que, ao longo de dois quilómetros, sobe uma encosta num ziguezague bem desenhado. Só com algum esforço é que dois carros se conseguem cruzar na estrada apertada, aparte as ocasiões em que esta é tomada por ovelhas em pasto. Das casas à beira da estrada pouco sobra para além de um café, uma capela e uma oficina. Resende, a quinze minutos de carro, onde vivem cerca de 11 mil pessoas, é uma metrópole ao pé de Vila Nova.

Era para lá que Mário ia todos os dias. O ponto de interesse era a Escola Secundária D. Egas Moniz, onde Vera estudou até ter desistido no 10º ano. Mário nem estava matriculado naquela escola, mas era para lá que ia com a assiduidade digna de um aluno do quadro de honra. Foi no portão que o rapaz de Vila Nova, merecedor do estatuto de mulherengo, conheceu Vera.

Começaram a namorar quando ele tinha 18 anos e ela 17. Passaram a viver juntos da maneira possível para dois jovens com poucos estudos e sem emprego: dividiam a semana entre a casa dos pais de um e do outro.

“Enquanto esteve comigo ele era cinco estrelas”, conta Vera, antes de começar a desdizer-se. Estiveram juntos três anos e alguns meses, até que a relação se foi desmoronando ao ritmo a que os ciúmes de Mário cresciam. “Eram muitas chatices, já passávamos a maior parte do tempo a discutir”, diz, com um ar cansado. “Ele vivia praticamente às minhas custas e dos meus pais. Eu chegava a ir para as vindimas e ele ficava em casa sem fazer nada. Era já muita coisa acumulada.”

Vera pôs um termo à relação. A princípio, Mário reagiu da maneira que achou mais fácil. Continuava a ir a Resende, sempre de carro, onde fazia questão de passear sempre com uma miúda ao lado. Conforme o dia, arranjava uma nova. Julgava ser uma maneira de equilibrar os três anos e meio que dedicara em exclusivo a Vera.

Durante seis meses, Vera esteve sozinha. A maior parte dos amigos que rodeava o casal afastou-se dela, à excepção de Costinha. “Toda a gente virou as costas à Vera, eu fui o único que não. Sempre lhe dei apoio e essas coisas assim, os outros não,” conta o bombeiro.

Foi com o início da nova relação da ex-namorada que Mário terá começado a descarrilar. Se até aí pouco ou nada bebia – o dono de um café onde o jovem era cliente habitual garante que, enquanto ele estava com Vera, só o via a pedir “águas, cafés, coca-cola e ice tea” - o fim do namoro levou-o ao álcool. Costinha fala numa vida social complicada: “Tanto tinha amigos, como de um momento para o outro já andava com outros, depois deixava aqueles e arranjava ainda outros amigos. Aquilo que eu ouvi era que ele pedia dinheiro emprestado e depois não pagava.”

“Eu gosto mesmo dela”

Mário não conseguia esquecer Vera. O dono do café que nunca tinha visto o rapaz tocar numa gota de álcool aconselhou-o a tentar divertir-se. “Eu dizia-lhe ‘mete-te aí com umas miúdas, diverte-te, rapaz… Tens idade para isso’. Mas ele só me respondia ‘já fiz isso tudo, mas não é a mesma coisa, eu gosto mesmo dela’.”

Raro era o dia que passava sem que Mário não ligasse ou mandasse mensagens para o telemóvel de Vera. Sempre de noite, geralmente entre as quatro e as seis da manhã. “Tanto fazia dela uma rainha como a tratava como um cão”, refere Costinha, que assumia o controlo do telemóvel nestas alturas.

Na madrugada de 21 de Agosto, como em tantas outras do mês mais quente do ano, Vera estava sozinha em casa. Quando Mário lhe enviou a mensagem a dizer “Vou dar-te trabalho”, este imaginava que Costinha estaria lá para lê-la.

Quando voltou do incêndio no monte de São Cristóvão e leu a mensagem, Costinha percebeu tudo. “Comecei a ligar os pontinhos todos. Eu tinha ouvido falar de uma senhora que tinha visto lá um carro durante o incêndio. (…) Eu fui falar com esta senhora e perguntei-lhe como era o carro.” Tudo apontava para o Peugeot 306 preto de Mário.

Vera - “Ele passou nos incêndios quando os estavam a apagar…”

Costinha - “…para ver se eu estava lá. Foi para dar trabalho. A única coisa lógica que eu vejo é que foi para me dar trabalho.”

Nos dias seguintes, Mário continuou a enviar mensagens e a telefonar. Até que Costinha lhe atendeu o telefone. “Eu comecei a puxar por ele, e ele disse-me que tinha botado um incêndio naquele sítio.” O bombeiro falou com o seu comandante e a partir daí foi feita a denúncia à GNR. Uma semana depois do incêndio, Mário estava sentado numa esplanada de Resende quando foi detido pela Polícia Judiciária. Segundo um comunicado desta polícia, citado pela agência Lusa, o jovem “terá actuado num quadro de alcoolismo e de um conflito de natureza passional”.

Sobre o conflito passional não restam dúvidas, mas muitos não acreditam que Mário tenha ateado os fogos sob o efeito do álcool, como o jovem terá alegado depois de ter sido detido. “Aquilo foi qualquer coisa má que lhe deu na cabeça, não foi bebida”, comenta-se em Resende. “Nunca ouvi nada disso de ele beber, já ouvi dizer foi que ele roubou uma mota aí há uns tempos,” avançam algumas vizinhas, em Vila Nova. “Foi a miúda que lhe deu a volta à cabeça, ele gostava mesmo dela”, sussurra-se por todo o lado.

Por que é que o Mário nunca conseguiu esquecer a Vera?

Costinha responde. “Pela pessoa que ela é…. Claro, é uma rapariga como as outras, não sei explicar… Pela maneira de ela ser, pela boa pessoa que é… Ou então é mesmo já doença da cabeça dele.”

O monte de São Cristóvão ainda cheira a queimado.