Militares da GNR a tempo inteiro, trabalhadores nas horas vagas

Joaquim estende o cartão com o nome, o número de telefone e a inscrição: “Consultor Imobiliário”. António ri-se quando o olham de lado de cada vez que entra no café todo sujo do carvão. Paulo chega a casa exausto depois de ter passado o dia a montar uma antena de TDT. Estes três homens têm uma coisa em comum: são agentes da GNR.

Rita Ferreira

Abril 2014

Quando o Governo decidiu que em 2012 iria acabar o sinal analógico de televisão e a TDT (Televisão Digital Terrestre) passaria a ser obrigatória nas casas de quem queria ver televisão, Paulo não percebeu de imediato que ali estava uma oportunidade de ganhar dinheiro. Mas não demorou muito a sabê-lo. “Foi um negócio da China!” Toda a gente precisava de instalar a nova tecnologia e rapidamente. Muitos não tinham paciência, ou vagar, ou sabedoria para saber onde encontrar tudo o que era necessário para a mudança. Por isso, Paulo tornou-se especialista em montagem de antenas e de aparelhos receptores de TDT. “Há um aparelho pequeno que se monta e se liga à antena, mas muitas vezes é preciso passar uma quantidade enorme de cabo do telhado até à sala. Houve casas onde a instalação durou um dia inteiro e cheguei até a correr risco de vida, quando apanhei duas trovoadas e tive de fugir do telhado a sete pés ou esconder-me atrás de uma chaminé”, conta.

O serviço que prestava era mais barato do que o cobrado por empresas da zona, que chegavam a levar mais de cem euros pelo serviço. “Eu levava 50, 70, 80 euros, conforme o tempo que demorava o trabalho.” Nesta altura, Paulo dedicou-se inteiramente às antenas. Havia trabalho de sobra e o rendimento extra que levava para casa servia para colmatar todo o dinheiro que havia perdido nos últimos anos: os cortes salariais tiraram-lhe quase 200 euros por mês e entretanto a mulher perdeu o emprego. Paulo é por isso a única fonte de sustento da casa onde moram mais duas crianças.

Paulo é militar da GNR. Antes de começarem os cortes salariais e do “enorme” aumento de impostos, tinha um salário que rondava os 1500 euros. Agora, não passa dos 1100 com um dos subsídios diluídos. O facto de ter subido de posto dentro da GNR fez com que perdesse mais dinheiro. O IRS que passou a pagar não chegou para cobrir o aumento salarial.

Nem sempre teve uma segunda ocupação. “Eu vivia no posto, a minha mulher até me podia ter deixado as malas à porta. Gostava muito disto quando entrei, queria mostrar serviço. Com o tempo vamo-nos desiludindo e perdendo a motivação. Ser GNR era um motivo de orgulho e tínhamos benesses até por causa disso. Se íamos ao banco pedir um empréstimo para comprar casa tudo era facilitado. Para comprar carro, a mesma coisa. Agora ninguém nos quer emprestar nada, já não temos essas facilidades.”

Paulo não anuncia que é GNR quando aceita fazer trabalhos. O tempo das antenas já lá vai e agora faz outras coisas. Biscates. Pequenos arranjos, pinturas e é o responsável pela manutenção de uma quinta perto da zona onde vive. Também se dedica à agricultura e vende muitos dos produtos que cultiva. “No ano passado vendi 400 quilos de abóbora, espinafres, alfaces, batata, favas, ervilhas, alhos, cebolas, maçãs, laranjas…”

Recibos não há. Facturas nem vê-las. “Estamos a fugir? Estamos, mas toda a gente foge. A economia paralela não começou cá em baixo, começou lá em cima”, argumenta. Paulo não tem por isso quaisquer remorsos de estar a infringir a lei, apesar de a sua profissão ser exactamente a de a fazer cumprir. “Os novos que entram aqui passam multas, depois de dez anos ao serviço avisamos mais do que multamos, depois de vinte anos nem avisamos, passamos ao lado”, desabafa. “Eu já gostei disto. Eu já gostei muito disto, mas agora é fazer as horinhas, rezar para que não aconteça nada e só pensar na Guarda quando se entra ao serviço.”

Hoje, Paulo está a fazer trabalho de secretária, mas na maioria dos dias anda na patrulha. O que facilita o biscate. “Vou falando com as pessoas que às vezes se queixam que precisam disto ou daquilo. Tomo notas mentalmente e depois ofereço os meus serviços quando já não estou ao serviço.” Paulo nunca diz que é GNR. Mas se perguntarem, não mente.

Dentro da lei

A Guarda Nacional Republicana é uma força de segurança de natureza militar e dispõe de cerca de 25 mil efectivos, espalhados por todo o país. O Estatuto dos Militares, a que obedecem, é claro no que respeita à possibilidade de os agentes exercerem outra actividade: a não ser que tenham autorização prévia, devem “privar-se (…)de exercer quaisquer actividades de natureza comercial ou industrial e quaisquer outras de natureza lucrativa, relacionadas com o exercício das suas funções ou incompatíveis com estas, enquanto na efectividade de serviço”. Tentámos junto da GNR saber quantos processos disciplinares já foram instaurados por incumprimento desta norma e se têm existido pedidos de autorização, mas ainda não obtivemos qualquer resposta.

Foi para prevenir alguma situação mais complicada que há três anos Joaquim enviou um pedido ao Comando-Geral da GNR para que lhe fosse dada autorização para ter uma segunda actividade, explicando que apenas faria este trabalho fora das horas de serviço e que a profissão em causa era perfeitamente compatível com o facto de ser GNR. “Era uma profissão muito exposta, sempre a lidar com muita gente, por isso achei que devia ter a autorização.” A resposta foi positiva e agora Joaquim é, nos tempos em que não está ao serviço da Guarda, agente imobiliário. Apresenta o cartão com o nome e o contacto telefónico. “Tenho dois telemóveis, um que uso ao serviço da GNR, o outro apenas para a imobiliária”, explica. É um profissional encartado – tem uma licença de angariador –, tem um contrato de prestação de serviços com a empresa em causa, recebe à comissão e paga os impostos devidos.

Joaquim ganha 1500 euros por mês na GNR e é a única fonte de rendimento do agregado, que conta com duas crianças e a mulher desempregada. “Estou a receber a níveis de 2008. Na altura tinha um posto inferior e ganhava mais”, diz. Por isso decidiu que era necessário ter outra fonte de rendimentos. “Claro que tudo isto é feito em prejuízo do descanso, porque as folgas são passadas a trabalhar na imobiliária.” Joaquim faz as angariações – tem cerca de 60 imóveis a seu cargo –, conduz as visitas e trata do resto do processo quando tem lugar uma venda ou um arrendamento. Tem um escritório fora de casa onde trata de todos estes assuntos, mas sem porta aberta para a rua.

Sabe que a sua situação é uma excepção à regra dentro da GNR. A regra, asseguram, é muita gente, quase toda a gente, ter um trabalho por fora sem que peçam autorização para o fazer. Joaquim já tem, contudo, respondido a vários colegas que lhe perguntam como fez para obter o aval do Comando-Geral.

©osomeafuriaO homem do carvão

Os horários dentro da GNR não são fáceis para quem necessita de um trabalho extra. Além de funcionarem por turnos, que, por vezes, duram toda a noite, apenas têm direito a um dia de descanso por semana e a um fim-de-semana inteiro a cada dois meses. Há algumas excepções, mas esta é a regra. Folgas rotativas, sete dias a trabalhar, um a descansar. Ou a trabalhar mais.

É às seis e meia da manhã que toca o despertador de António, quando está de folga. “Levo uma buchazita, levo o almoço e passo o dia no campo. Corto a lenha, carrego a lenha, trago para o forno.” António é produtor de carvão, juntamente com um amigo, o dono da terra onde têm o forno de tijolo e onde a lenha arde durante cinco a seis dias até que se veja fumo azul. São precisos cerca de quatro mil quilos de lenha para fazer 800 a 900 quilos de carvão. Acende-se e espera-se. Como António está de serviço, é o amigo que tem por função ir observando o fumo que sai do forno com três metros de diâmetro, redondo, parecido com um iglu. “Quando o fumo passa de branco a azul é sinal de que a lenha já deixou de arder. Tapa-se o forno com barro, abafa-se e espera-se até que se forme o carvão.” Este processo pode levar sete a oito dias e cada fornada rende cerca de 150 euros, aos quais tem de retirar-se o preço da lenha.

Estando o carvão pronto, António e o amigo preparam as embalagens de vinte quilos cada, que serão vendidas a uma empresa que se encarregará da distribuição. “Vendemos a trinta cêntimos o quilo, umas vezes vendemos mil, outras dois mil , outras três mil quilos. A dividir por dois… Se fosse para um dava bem, se eu pudesse fazer isto sozinho, mas não dá, não tenho tempo.”

António diz que consegue levar para casa uma média de duzentos euros por mês. Ou seja, pouco mais do que aquilo que perdeu de salário nos últimos anos. Durante muito tempo esteve na GNR sem que tivesse de ter outra actividade, mas há quatro anos regressou ao carvão, uma arte que tinha aprendido enquanto miúdo. “Quando entrei na GNR, há 15 anos, o ordenado chegava. Era solteiro, não tinha filhos. Depois vieram as crianças, a situação financeira complicou-se. Mas isto também dá pouco para o trabalho que exige. Quase não estou em casa, nunca chego antes das sete da tarde.”

É um trabalho porco, diz António a sorrir. “Por causa do pó preto. Às vezes vamos beber uma cervejinha lá ao café e até tem a sua graça: estamos todos pretos, a cheirar a fumo, é um trabalho e um divertimento, andamos entretidos pelo campo.” Autorização não pensa pedir. Não vale a pena: “Ia tudo para as finanças. Pago o IVA aos compradores mas a factura é deles.”

Também António garante que a maioria dos militares da GNR tem uma segunda actividade. “Não se fala muito nisso, mas têm. E ninguém chateia.” Há locais onde se fala mais abertamente do assunto e não é segredo para ninguém que aquele é pintor, o outro vende casas, o que acabou de sair é taxista, o que acabou de entrar ao serviço é pedreiro. Por isso, é com naturalidade que, numa tentativa de contacto telefónico para um serviço territorial, se ouça do outro lado da linha: “O António está de folga, está a trabalhar.”

Todos os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios.