Maria Cecília, candidata aos 87 anos por amor ao partido

É a candidata mais velha a concorrer nas autárquicas de 29 de Setembro. Cabeça de lista da CDU à Câmara Municipal de Mortágua, Maria Cecília Barbosa não tem cartazes na rua e ainda está a pensar se vai fazer campanha. Jamais deixaria o partido sem candidato. Por isso aceitou o convite.

Rita Ferreira

Setembro 2013

É logo na rotunda que marca a entrada na vila de Mortágua que qualquer eleitor, mesmo o mais distraído, fica a saber que as eleições autárquicas estão por dias. E que por aqui a bipartidarização impera. O tamanho sempre conta, PS e PSD têm os maiores cartazes.

Sob um fundo azul, os socialistas que detêm o poder na autarquia mostram a equipa encabeçada por João Fonseca e garantem que serão “Todos por Todos”. Ao lado, quase encostado, José Júlio Norte é a única cara no cartaz do PSD. “Por Mortágua Sempre Presente” é a frase escolhida pelos social-democratas para convencerem o eleitorado laranja da região – Mortágua faz parte do famoso cavaquistão – a virar à direita. Mais pequeno, mas presente, o cartaz do CDS, a pedir “Um Novo Rumo, Um Novo Presidente”. Filipe Valente, a barba ruiva devidamente aparada, é o homem que querem eleger.

O carro contorna a rotunda e entra na vila. Lá estão novamente os cartazes, espalhados pelas ruas, e é fácil identificar as sedes de campanha de cada um dos candidatos. Mais umas voltas e são sempre as mesmas caras. Os três homens, os três partidos, os slogans que apelam ao voto.

Mortágua é por estes dias uma vila quase fantasma. Há muito pouca gente na rua – é certo que os 37 graus que marcam os termómetros às onze da manhã não ajudam – e quase todos os estabelecimentos comerciais e de restauração estão fechados para férias. A explicação é simples. Agosto foi mês de festas e de emigrantes – a população triplica durante o Verão – e a primeira quinzena de Setembro é destinada ao descanso.

Rosário tem a loja aberta. Vende roupa e fatos de banho de senhora. Sentada atrás do balcão, olha por cima dos óculos para quem acaba de lhe entrar na loja. É preciso ajuda para encontrar a sede de campanha da CDU, já que numa primeira visita pela vila nem um cartaz da candidata se encontra. Rosário não sabe onde poderá ser a sede da coligação que junta comunistas e verdes. Mas quando ouve o nome da candidata, os olhos abrem e a voz quase se esganiça. “A Cilita Barbosa???” – exclama - “Não sabia!” E não é a única. Tal como Rosário, que conhece bem Maria Cecília Barbosa, muita gente em Mortágua ainda está por saber que a antiga professora primária, a Cilita, que com 87 anos conduz pela vila fora um Citroën “Dois Cavalos” bege, vai candidatar-se à presidência da câmara pela CDU (este último facto não surpreende ninguém porque por estas bandas toda a gente sabe quem são os comunistas).

Apesar de garantir que Maria Cecília Barbosa “é muito conhecida na terra”, há os que a conhecem melhor que outros. Por isso Rosário leva-nos até aos “Lobos”. É assim que é conhecida a mercearia/tabacaria gerida por André Lobo, bisneto do fundador do estabelecimento. Os móveis até ao tecto, o cheiro a madeira misturado com o do café moído, o fresco que se sente ao entrar, o balcão comprido coberto de pedra mármore. André é agora o guardião de 120 anos de história da família. Uma história que se cruza com a de Maria Cecília, que muitas vezes brincou naquela loja com os primos. Não com André, que tem menos quarenta anos e sorri com bonomia quando se fala no nome da “parente afastada”.

“Soube aqui na loja que ela era candidata”, diz André. E como a invisibilidade da cabeça de lista poderia indiciar que Maria Cecília não seria pessoa de dar entrevistas, o melhor era jogar pelo seguro e tentar logo ali saber alguma coisa sobre ela. “É baixa, tem o cabelo branco, é magrinha e ainda solteira”, conta. “Gosta de viajar, gosta de correr mundo e ainda conduz, mal, mas conduz”, acrescenta.

André não partilha a ideologia da prima, mas gaba-lhe a coerência. E com a confusão instalada entre PS e PSD na luta pela autarquia (o candidato laranja era o vice-presidente do PS no executivo cessante), não põe de parte a hipótese de dar o seu voto a Maria Cecília. O pai de André, Albano Lobo, foi o primeiro presidente da Câmara Municipal de Mortágua depois do 25 de Abril. Era comunista.

Cecília abre a porta de casa

Por esta altura, ainda convencidos da discrição (excessiva?) da candidata da CDU, a mais velha a concorrer às eleições autárquicas em todo o país, partimos em busca da casa que fica ao pé da estação de comboios. Uma vivenda em pedra, com um grande terreno, e escadas que vão dar a uma varanda cheia de flores e com dois bancos de jardim, normalmente habitados pelos três gatos de Maria Cecília.

A verdade é que ficámos a conhecer os bichos ainda não tínhamos conhecido a professora octogenária. São o Macaco, o Fusco e o Pirolito. É a vizinha, Albertina, que cuida deles quando Maria Cecília vai de viagem. Albertina, vestida de preto, poucos dentes na boca, mãe de dois filhos, avó de cinco netos e viúva há trinta anos, indica o portão da casa da vizinha agora famosa – “soube pelo jornal que ela era candidata e que até era a mais velha do país”, explica com um sorriso rasgado. E acrescenta: “Ela está em casa porque o carro está ali.”

E estava. E abriu o portão e ofereceu um lugar no banco de jardim. É baixa, tem o cabelo branco, é magrinha. Ajeita a saia azul escura quando se senta e ri-se com facilidade. Avisa que está cansada porque há cinco minutos saíram de lá dois jornalistas que durante mais de uma hora a entrevistaram. “Andaram a dizer aí na comunicação social que eu não quis receber uns jornalistas que vieram cá bater à porta, mas é mentira. Nesse dia acordei com uma dor na cervical que nem conseguia virar a cabeça e não saí da cama. Nem os vi…”, conta Maria Cecília, desvendando assim o mistério da sua invisibilidade. Ou pelo menos parte dele.

Maria Cecília Barbosa nasceu em 1926 em Mortágua. A primeira filha de um funcionário da câmara municipal que estudou artes em Coimbra e que foi o responsável - entre reuniões clandestinas, idas à PIDE, uns dias na cadeia e amizades “perigosas” com Tomás da Fonseca - pelo restauro da cúpula da igreja de Mortágua. Foi ele e um tio de Maria Cecília. Sai-lhe uma gargalhada: “Veja lá, não tiveram ninguém para restaurar a igreja que não fosse comunista.”

Cecília diz que na altura era a única com tal nome ali na terra. O nome escolhido pelo pai ateu, por ser o da santa padroeira da música, Santa Cecília. E tal como o pai, de quem mostra orgulhosa os retratos que ele pintou e que estão pendurados pelas paredes da casa, Cecília gostava das artes. Mas o orçamento curto da família não lhe permitiu seguir o sonho. “Estudei em Coimbra, no Magistério, e tirei um curso que eu nunca quis tirar na minha vida. Queria estudar música, escultura, pintura, mas o meu pai não tinha dinheiro e por isso tive de tirar o curso mais barato”, conta, conformada. Também pintava, mas uma tendinite afastou-a das telas. Talvez por isso não queira mostrar qualquer dos seus quadros.

Como não é mulher de se queixar, trata de remendar o lamento antes feito: “Não éramos ricos, mas não tínhamos fome, nem nada. O meu pai quando morreu tinha mil e quinhentos escudos no bolso, nunca teve dinheiro no banco. Eu gosto de ser assim, não gosto de grandezas nem quero ser rica.” Sabe que tem uma boa vida, mas aos 87 anos conta os mortos como se contasse quantos figos maduros ainda estão na grande figueira do quintal. “A minha mãe morreu, o meu pai morreu, a minha madrinha que vivia cá em casa morreu, a minha avó morreu. Quando tinha 14 anos fui operada a uma perna e fiquei dois anos sem poder andar. Depois apanhei o tifo e estive mais três meses de cama. Estive para morrer e não morri. O meu irmão morreu. Tinha 17 anos e eu tinha 18. Ele teve pouca sorte e morreu. Eu não morri, se calhar ele era melhor que eu.” A conversa pára aqui. Cecília abana a cabeça e diz que não quer recordar aquele ano.

Voltemos às eleições então. Convidada por uns “camaradas de Viseu” para encabeçar a lista da CDU, Maria Cecília Barbosa não foi capaz de dizer que não ao partido. “Estava em risco a candidatura da CDU aqui em Mortágua, não havia ninguém que quisesse, falaram comigo e eu disse pronto, então, está bem”, explica aceleradamente. E justifica mais uma vez: “A CDU tem sempre concorrido e deixava de concorrer? Fui eu.” Até porque o risco de Maria Cecília ser eleita é praticamente nulo. Ela sabe disso. E é por isso que se candidata. “Se houvesse a hipótese de ser eleita eu não aceitava. Nunca quis ser presidente nem directora de coisa nenhuma. Fui directora da escola porque tive de ser e fui também responsável pelo primeiro recenseamento que foi feito em Mortágua depois do 25 de Abril.” Faz contas: “Ora, 25 de Abril de 74, 75, 76. Foi em 1976. Passei a noite de Natal a trabalhar e até houve gente que nos trouxe filhoses.”

O programa eleitoral ainda não está concluído. Cartazes nem vê-los, Maria Cecília não quer ouvir falar disso. Concede que vai ter de fazer alguma campanha, embora ache, sinceramente, que não precisa. “Aqui toda a gente me conhece”, garante. Além disso a honestidade que carrega do alto das suas quase nove décadas pode não favorecer a caça ao voto…

“Mortágua até já tem muito que antes não tinha, porque este presidente, honra lhe seja feita, tem sido um bom presidente, que mudou o visual a Mortágua. Agora vai embora e vai concorrer outro que também é uma excelente pessoa, o veterinário João Fonseca. O do PSD… já me contaram a história. Vai ser renhido, mas estou convencida que é o PS que vai ganhar.”

Maria Cecília não tem de pensar muito antes de falar. Não usa estratégia, e quando se levanta a hipótese de fazer uns comícios desata a rir. “Estou mesmo boa para isso! Eu já trabalhei muito. Quarenta e dois anos de descontos e ainda há pouco tempo me roubaram duzentos euros. Só vivo da minha reforma e tenho este quintal que só me dá prejuízo, tenho de mandar limpar isto tudo, isto era só canas aqui à volta e eu tenho medo do fogo”, explica. O fogo, mais um pretexto para elogiar o trabalho do presidente da câmara cessante, o homem que investiu na floresta e cujo esforço deu frutos, já que o grande incêndio do Caramulo, recentemente, não galgou as fronteiras do concelho de Mortágua. “Tirou do orçamento 60 mil euros para pagar aos vigilantes da floresta!”, diz, orgulhosa.

Maria Cecília Barbosa tem uma vida pacata na maior parte do ano. Levanta-se, anda ali por casa, cozinha, vai às compras, toma café com as amigas, visita a prima na farmácia, vê televisão (vê uma telenovela na TVI e é fã do Eixo do Mal, na SIC Notícias), trata dos gatos e das flores. Aos domingos almoça com um grupo de pessoas num restaurante da vila e por ali fica à conversa, muitas vezes a planear mais uma viagem. “Já corri Seca e Meca, Olivais e Santarém!”, que é como quem diz, todos os anos passa uma semana em Cabo Verde, na ilha do Sal, com a irmã e a prima, e vai regularmente em excursões com um grupo de pessoas da vila. A memória não lhe falha: “Para fazer praia, o melhor é Cabo Verde ou Tunísia. Também gostei das ilhas gregas. Fui à Turquia, à Tailândia, a Cuba, a todos os países de Leste, Rússia, Hungria, República Checa, Eslovénia, Croácia, Montenegro, Sérvia, Áustria também fui. Dos países nórdicos gostei mais da Noruega. Agora estas viagens já me cansam um pouco, prefiro uma praia com água quentinha, onde já conheço as pessoas. Por isso é que vou sempre para o Sal. Adoro aquelas pessoas, são pessoas mesmo queridas.”

O frigorífico, cheio de ímans de diferentes países, qual sonho de um adolescente que anseia conhecer o mundo, é a prova do espírito aventureiro de Maria Cecília. Porque é preciso querer para nunca parar. Para todos os dias pegar no “Dois Cavalos e sair por aquele portão com má visibilidade para a estrada empedrada que lhe passa à porta.

Por isso as eleições não são mais importantes do que a vida que todos os dias leva para a frente. “Ainda tenho de ir a Lamego, vou lá passar uns dias a casa da minha sobrinha, não sei bem quando volto.” Maria Cecília Barbosa aceitou o desafio do partido, mas não quer com isso ter grandes preocupações. Porque a política, para ela, foi feita a sério no tempo em que distribuía panfletos ao lado de Álvaro Cunhal na Festa do Avante e quando o PCP fez por Mortágua coisas tão importantes como a construção de um parque infantil para as crianças da terra. A outra política, a que aparece nos cartazes, não lhe interessa.

- Então e o que acha do Jerónimo de Sousa?, perguntamos.

Ela responde:

- Está velho, não acha?