Faltavam três dias para a Páscoa. Na manhã de 17 de Abril de 2014, Manuel Pinto Baltazar estava no tribunal de São João da Pesqueira, um bem conservado solar barroco do século XVIII, situado à entrada da vila. Manuel, 61 anos, conhecido por todos como “Palito”, um apelido herdado do pai, aguardava ser ouvido por um juiz. Há menos de um ano, o mesmo tribunal condenara-o a três anos e dois meses de prisão pelos crimes de violência doméstica, ofensas à integridade física e ameaça agravada, perpetrados contra a ex-mulher, Angelina, a tia desta, Elisa Barros, e o filho, Rui. Contudo, Manuel teve sorte. Em vez de ir para a cadeia, aplicaram-lhe outras medidas: estava proibido de se aproximar de Angelina (a distância mínima imposta foi de 400 metros) e colocaram-lhe uma pulseira electrónica. Mas ele desrespeitara recentemente a ordem de distância de Angelina, por duas vezes – numa delas, surpreendeu a ex-mulher no cemitério e voltou a ameaçá-la com uma foice.
Naquela quinta-feira, a inquirição a Manuel acabou por ser adiada. Não havia qualquer juiz disponível para dirigir a audição. Em São João da Pesqueira, vila com cerca de 2200 habitantes, localizada a 850 metros de altitude, no coração do Douro, era um dia igual aos outros. A maioria da população trabalha nos campos, pelo que, durante o dia, as ruas têm pouco movimento. Só ao fim da tarde, os cafés e tabernas recebem os trabalhadores rurais: em Abril, é tempo de tratar as vinhas e fazer azeite. Depois de alguns anos a trabalhar na construção civil, na Suíça e na Líbia, Manuel dedicou-se à lavoura. Tinha alguns campos seus, outros que alugara à ex-sogra, Lina Silva, nos quais tinha vinha (maioritariamente para vinho do Porto, cujas uvas vendia às cooperativas locais), olivais e castanhais.
Protelada a audição com o juiz, Manuel entrou no seu carro e saiu de São João da Pesqueira. Não se sabe se terá ido a sua casa, em Trevões, a cerca de 20 quilómetros, uma vila que remonta ao século XIII e que integra a “Rota das Aldeias Vinhateiras”. Foi outrora um lugar onde pontificavam vários solares e casas senhoriais, que ainda hoje se mantêm intactos graças às suas conversões em museus (há dois, um de Arte Sacra, outro Etnográfico), numa biblioteca e num lar. A casa de Manuel não fica distante do centro desta elegante vila – é uma vivenda, construída por si, com um piso térreo onde fica a garagem com portão de ferro, um primeiro andar para habitação, e um sótão. Nas traseiras, há ainda uma pequena horta e espaço suficiente para os seus três cães de caça.
Sabe-se que às 14h00, Manuel estava a 350 metros de Angelina e que esta se encontrava em Valongo dos Azeites, a sua aldeia natal, juntamente com familiares. A infracção dos 400 metros de distância alertou os técnicos da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que vigiam os utilizadores de pulseira electrónica e velam pelo cumprimento daquele tipo de penas. Angelina atentou no alerta dado pelo dispositivo que sempre a acompanhava, mas não deu muita importância. Ligou para a DGRSP e disse saber que o ex-marido estava próximo, mas que isso não suscitava preocupação, pois estava acompanhada por membros da sua família.
Manuel haveria de voltar cerca das 16h00, com uma caçadeira na mão.
De Valongo dos Azeites, Manuel dirigiu-se para Vilarouco, nomeadamente para o restaurante “Sobreiro”, propriedade de um amigo da caça, Norberto. Quando entrou na enorme sala de refeições, com vista para as vinhas plantadas em socalcos, Norberto, a mulher, Manuela, que é a cozinheira do estabelecimento, e um outro homem, estavam prestes a almoçar, pois a casa já estava vazia de comensais. Manuela convidou-o a sentar-se à sua mesa e foi buscar mais um prato. Comeram feijão frade e carapaus fritos, falaram sobre o Benfica, e Manuel rematou o repasto com um carioca de limão, que já tomou ao balcão do “Sobreiro”.
O almoço fora tardio e Manuela não notou qualquer diferença de comportamento no amigo do marido. Quando ali aparecia mostrava ser uma pessoa reservada, não bebia álcool, falava pouco. Quando contaram a Manuela o que acontecera, pouco tempo depois, ela teve pena dele. “A gente nunca sabe o que a vida nos reserva.”
Às 15h52, o alerta voltou a soar nos computadores da DGRSP: Manuel Baltazar estava novamente a menos de 400 metros de Angelina, em Valongo dos Azeites. Os técnicos tentaram contactar, por telemóvel, Angelina e Manuel. Em vão. Ninguém respondeu às chamadas. A alternativa era avisar o posto da GNR mais próximo de Valongo dos Azeites.
Nessa altura, já Manuel, armado com uma caçadeira carregada com cinco cartuchos, disparara sobre quatro mulheres: Angelina, a sua filha, Sónia, Lina Santos e Elisa Barros. A ex-sogra e a tia da ex-mulher, Lina e Elisa, morreram no local, na casa de um amigo que lhes cedera o forno a lenha por uma tarde para elas prepararem os bolos da Páscoa. Angelina e Sónia ficaram gravemente feridas, mas sobreviveram.
A população de Valongo dos Azeites, uma pequena aldeia onde há poucas centenas de habitantes e muitas vivendas fechadas, propriedade de emigrantes, ouviu os tiros. E adivinhou o que acontecera. Todos sabiam que Angelina era perseguida há anos, que se refugiara, em 2009, numa casa-abrigo da Associação de Apoio à Vítima, tendo fugido daqui para Lamego, pois Manuel descobrira o seu paradeiro. Também em Lamego, o ex-marido acabou por encontrá-la – Angelina aguardava pela chegada do autocarro, abrigada numa paragem, quando viu o carro de Manuel.
Para onde quer que fugisse, ele iria persegui-la. Por isso, desistiu de fugir. Regressou a Valongo dos Azeites e à casa onde vivera até ao dia do seu casamento, em Dezembro de 1980. Os filhos, maiores de idade, residiam em cidades não muito longe dali.
Quando a GNR chegou a Valongo dos Azeites, Manuel já estava longe. Sabe-se que ainda esteve em sua casa, em Trevões, e que aí cortou a pulseira electrónica que tinha presa ao tornozelo. E sabe-se pouco mais. Apenas que desapareceu, armado com uma caçadeira, por 34 dias, ao longo dos quais foi avistado três vezes. No seu encalço estiveram 200 homens da GNR, apeados e a cavalo, cães pisteiros, drones e operacionais da Polícia Judiciária, que bateram todas as aldeias da zona, montes, casas agrícolas abandonadas e grutas, numa área com 264 quilómetros quadrados.
Durante mais de um mês, houve quem temesse ir trabalhar para os campos; em Valongo dos Azeites, a família de Angelina receava mais mortes; correu o boato de que Manuel teria uma lista de alvos a abater, composta por aqueles que tinham testemunhado contra ele em tribunal; as aldeias e vilas foram invadidas por uma inédita multidão de jornalistas e forças de segurança, o que reavivou temporariamente a economia local.
Ao princípio da noite de 21 de Maio, Manuel foi finalmente capturado pela Polícia Judiciária, no momento em que se preparava para entrar em sua casa. Estava armado, mas não ofereceu qualquer resistência. Mais tarde, diria que a sua vontade já era a de se entregar às autoridades. Tal como Angelina, anos antes, Manuel estava cansado de fugir.
Nos jornais escreveu-se que estava muito debilitado, que perdera as unhas dos pés devido aos muitos quilómetros que percorrera, que esteve muitos dias sem beber líquidos, que se alimentara apenas de raízes e ervas. Os seus amigos, caçadores, não acreditam. Era um “homem do mato”, um sobrevivente, alguém que, na caça ao javali, batia o terreno, “entrava onde os cães não entravam”, capaz de ficar horas deitado na lama para os animais não lhe sentirem o cheiro. Era um profundo conhecedor de todos os montes, zonas de fragas e de floresta. Por isso, dizem, conseguiu manter-se escondido durante tanto tempo. E lembram que, entre Abril e Maio, não há ainda frutas nos pomares nem legumes nas hortas. Mas há água potável no rio Torto, que, em alguns locais, se assemelha a um ribeiro. Em voz baixa, asseguram que Manuel teve ajuda, que alguém o alimentou, e que ele nunca esteve muito longe da sua aldeia, resguardando-se durante o dia nos cardanhos - as velhas casas, aparentemente perdidas no meio dos campos, onde são guardados instrumentos agrícolas - e saindo à noite, ao encontro de quem o ajudava e procurando mudar de localização.
Em Trevões, quase ninguém quer falar sobre o que aconteceu, os habitantes olham de soslaio os forasteiros, e consta, ali e em aldeias vizinhas, que a Polícia Judiciária (PJ) anda em busca de eventuais cúmplices na fuga de “Palito”. Trevões parece querer esquecer os dias que abalaram a povoação. E Manuel continua a ser um filho da terra, um irmão, um homem trabalhador a quem não negariam, mesmo em fuga, um prato de sopa.
No dia em que foi presente a tribunal, e do qual saiu com a medida de coação mais grave, a prisão preventiva, havia feira em São João da Pesqueira. Ao contrário do que é habitual, havia mais movimento, muitos habitantes das aldeias circundantes acorreram à vila para comprar e vender mercadorias e produtos agrícolas. Defronte do solar que acolhe o tribunal, a estrada estava cortada, o local guardado por muitos agentes das forças de segurança. Alguns alunos da Escola Profissional do Alto Douro, junto ao tribunal, julgavam até que o aparato anunciava a chegada do primeiro-ministro.
Às 16h00, Manuel, cabeça coberta por um casaco, ladeado por polícias, saiu de um carro que estacionou defronte da grande porta de madeira. Os populares que o esperavam dividiram-se entre urros, assobios e aplausos. No dia seguinte, os jornais nacionais puxaram pela forma como ele foi recebido em São João da Pesqueira, entrevistando quem aplaudiu o homicida. As respostas não variaram: as palmas não eram para os crimes que cometeu, mas para a forma como conseguiu “ludibriar” as autoridades durante tanto tempo. Os aplausos eram para o sobrevivente, não para o assassino, alegaram.
Quando Manuel saiu do tribunal já não ouviu palmas. Tinha a cabeça descoberta, barba por fazer, olheiras profundas que denunciavam cansaço. Nas mãos, algemadas, segurava uma garrafa de água.
***
Durante os 34 dias de fuga, Manuel apareceu a três pessoas, em outros tantos locais diferentes: a José Costa, um amigo, também caçador, em Penedono; a João Pessoa, distribuidor de pão, na estrada que liga Trevões a Várzea de Trevões; e a Fernanda Pinto, doméstica, em Vale da Vila. Cada um deles, relata o que aconteceu.
Penedono, 18 de Abril, princípio da noite
A amizade entre José Costa e Manuel Baltazar tem alguns anos e fez-se sobretudo nas caçadas ao javali. Mesmo depois de o tribunal ter proibido Manuel de possuir qualquer arma de fogo, José e outros companheiros continuavam a convidá-lo para as jornadas de caça: Manuel ocupava-se então de outras tarefas, como assar a carne que acomodava os estômagos antes da partida para os montes. No fim do longo processo judicial que culminou com o divórcio, Manuel não perdoava aqueles que, em tribunal, tinham testemunhado contra ele, reconstituindo os episódios de violência e perseguição contra a ex-mulher. “Um dia vou matar o bando todo”, dizia, repetidamente. Um dia, José perdeu a paciência para aquela ladainha e decidiu testar o amigo. Queria saber se ele seria realmente capaz de matar alguém. “Ó Manel, mata aí aquele cão, que me anda a chatear e já não preciso dele”, desafiou-o, na quinta que José possui, a dois quilómetros de Penedono. “Mata tu”, respondeu-lhe Manuel.
No dia dos crimes, a 17 de Abril, ao início da tarde, José telefonou várias vezes para o amigo. Queria informá-lo que conseguira arranjar um advogado interessado em defender Manuel. Mas o telemóvel estava desligado e José supôs que a audiência em tribunal não tinha acabado da melhor forma: “Queres ver que foi preso?, pensou.
O agricultor voltou ao trabalho – na sua quinta tem vacas, cabras, ovelhas, e um pomar de macieiras. É lá que passa os dias, regressando a casa, em Penedono, no seu tractor. A meio da tarde o seu telemóvel tocou: “Ó Zé, o Manel matou a tia, a sogra, a mulher, a filha, matou toda a gente.”
No dia seguinte, José escolheu o início da noite para matar um cabrito. A operação exige cuidado e tempo: faz-se um golpe atrás da orelha, com uma navalha cabriteira, enquanto se aperta a boca do animal para ele não berrar; depois de morto, faz-se um furo numa das patas traseiras e enfia-se um pedaço de mangueira, através do qual se sopra durante alguns minutos; o ar permite arrancar a pele com mais facilidade.
Já havia pouca luz, o céu estava quase escuro, quando José sentiu uma presença atrás de si. Manuel estava ali, caçadeira na mão, calças e camisola, a cerca de 15 quilómetros de sua casa, em Trevões. “Já viste o que fizeste à tua vida?”, perguntou-lhe José. “Será melhor entregares-te à Guarda”. O homicida retorquiu que não queria entregar-se à polícia; afirmou que não era sua intenção disparar contra a filha; implorou ao amigo para não o denunciar. “Pela alminha do teu filho, não me entregues.”
A conversa não durou mais de 10 minutos e, para José, terminou da pior maneira. Enquanto olhava para Manuel, que se afastava em direcção aos montes, assombrava-o já um dilema: denuncio ou não denuncio? Se antes não existiam dúvidas de que o faria, se encontrasse o amigo, aquela última prece deixou-o inquieto. O filho morrera há alguns anos, ainda criança. Manuel sabia quão afectado ficara o amigo com aquela morte, sabia que essa dor ainda estava viva e, por isso, atingiu a sua maior fragilidade.
José sentou-se num banco, não sabia o que fazer, pensava no pedido “pela alminha” do filho. Não tinha forças para tomar uma decisão e, por isso, ligou à mulher. Esta, depois de ouvir o relato do encontro e a última frase de Manuel, não hesitou na resposta: José não deveria informar a GNR sobre o que acontecera. Porém, a conversa com a mulher não quebrou o dilema de José. O que fazer? O que fazer?, pensava, ainda sentado no banco. “Algum tempo depois, cheguei à conclusão de que tinha de ligar à Guarda. Isto não podia ser assim, ele cometeu crimes e tinha de pagar pelo que fez.”
A GNR e a PJ acorreram rapidamente à quinta de José e, no dia seguinte, toda aquela área estava já a ser vigiada por um grande dispositivo de agentes. O agricultor colaborou com as autoridades: todas as noites deixava queijo e chouriço numa das pequenas casas que tem no terreno, uma espécie de armadilha para capturar o foragido ou, pelo menos, para saber se ainda se mantinha por aquelas zonas. Até 21 de Maio, a comida ficou intacta sobre a mesa.
Estrada entre Trevões e Várzea de Trevões, 25 de Abril, meio da tarde
João Pessoa é conhecido em São João da Pesqueira e em todas as aldeias e vilas vizinhas. É um dos muitos distribuidores de pão e bolos que, ao volante de carrinhas brancas, percorrem as povoações e fazem-se anunciar através de persistentes buzinadelas. Naquela sexta-feira, 25 de Abril, feriado nacional, o pão não deixou de chegar aos lugares mais isolados. Para João, não há feriados; o descanso só acontece nas tardes de Domingo.
Sete dias depois de Manuel Baltazar ter sido visto em Penedono, João julgava que o agricultor já estava bem longe, em terras de Espanha. Foi isso que ouviu, durante as suas andanças na terra natal de Manuel, em Trevões. O distribuidor conhecia “Palito”, costumava vender-lhe pão, mas as conversas que tivera com ele eram sempre de circunstância e nada mais. Quando Manuel estava nos campos e precisava de pão, deixava um saco plástico aberto pendurado no portão da sua garagem. João deixava-lhe dois pães grandes, o pagamento seria no dia seguinte. Se o saco estivesse enrolado, nem valeria a pena parar a carrinha.
Naquela sexta-feira, ao princípio da tarde, João estava prestes a rumar à sua última paragem do dia, Várzea de Trevões, uma aldeia escondida num vale, com poucos habitantes e muitas casas vazias. De Trevões para a Várzea, a estrada é estreita e ziguezagueante, ladeada, numa parte do percurso, por altos muros de pedra. Estranhamente, é uma estrada com dois sentidos. E, por isso, João conduz ali de forma mais cautelosa – quando aparece um carro no sentido contrário, as manobras exigem paciência e habilidade. Ao descer, João viu, não muito longe de si, uma carrinha de caixa aberta. “Pensei logo que devia colar-me a ela para evitar encontros com carros em sentido contrário.” O condutor mal teve tempo de acelerar, pois, quase em simultâneo, viu um vulto a descer, quase deitado, uma pequena encosta cheia de vegetação selvagem. “O que é que este filho da puta está aqui a fazer?”, questionou-se, percebendo de imediato tratar-se do foragido.
Manuel colocou-se no meio da estrada, de frente para a carrinha de João, as mãos no ar a pedir que parasse. Vestia um fato impermeável, calças e casaco largo, num verde desbotado, a barba já crescera bastante, o cabelo estava sujo e despenteado, as mãos vazias, sem a caçadeira.
João parou. Mal teve tempo para tentar fazer descer a janela do lado do pendura, pois Manuel entrou na carrinha, agachou-se e pediu-lhe para conduzir mais alguns metros. “Palito” sabia qual era o local mais seguro para parar: de um lado da estrada, erguia-se uma figueira que impossibilitava aos que trabalhavam lá em baixo, nas hortas, ver quem estava na estrada; do outro, uma encosta de carrascos, os arbustos silvestres que crescem nas zonas não cultivadas, entre pequenas fragas.
“O que é que você anda aqui a fazer?”, perguntou-lhe João, ainda dentro da carrinha. Manuel, que sabia que o distribuidor de pão passava naquela estrada todos os dias, quase sempre à mesma hora, respondeu-lhe laconicamente: queria pão e bolos. “O que tens aí para beber? Água ou sumos?”, acrescentou. João deu-lhe uma garrafa de água de um litro e meio, supondo que “Palito” estava sedento. Enganou-se. Manuel bebeu apenas dois ou três goles e devolveu a garrafa. E saiu da carrinha. João fez o mesmo e reincidiu na pergunta. “O que andas aqui a fazer?”. Manuel, olhando constantemente à sua volta, com um olhar “assustado”, disse-lhe: “Diz-me só como é que está a minha filha. Só ainda não me matei por não saber nada dela.” João contou-lhe que Sónia tinha sobrevivido. “Mas então você tenta matá-la e agora diz que não se mata por causa dela?” O seu interlocutor desviou o olhar para o lado e respondeu que “isso foi outra coisa”.
João entendeu que não valia a pena prolongar a conversa; nessa altura estava já a pensar se iria denunciá-lo ou não. Abriu a porta lateral da carrinha, tirou dois pães grandes e guardou-os num saco plástico de asas. “Quantos bolos quer?”, perguntou a Manuel. “Arranja aí dois.” João escolheu um napoleão de chocolate e um palmier simples e colocou-os num outro saco de plástico. Manuel puxou de imediato da carteira, que tinha num bolso junto ao peito, e tirou uma nota de 20 euros para pagar a conta, de três euros.
João não ficou muito surpreendido com o pagamento e, enquanto tratava do troco, pediu-lhe para se entregar à GNR. “Anda para aqui assim, perdido. Será melhor entregar-se.” “Não me entregues”, ripostou Manuel. “Pronto, está bem”, assentiu João, agora mais ansioso por sair dali. “O que me dava jeito era que me emprestasses um telemóvel. Precisava de ligar a alguém para me trazer roupa e calçado seco. Estou todo encharcado. Vês? Até tenho a bota toda molhada.” João olhou para a bota e respondeu sem pensar que aquele homem poderia ter a caçadeira por perto: “Olhe, eu não lhe posso emprestar o telemóvel. Só tenho aquele. E sem ele fico enrascado.” Manuel não insistiu. “Pronto, está bem. Mas ó João, não me entregues.” E trepou espantosamente uma fraga, que, algumas horas depois, foi um obstáculo difícil de transpor para os cães da GNR. João mal teve tempo para fechar a porta da carrinha. Quando olhou para trás, já o foragido estava no cimo da encosta, parcialmente escondido pela vegetação cerrada.
A caminho da Várzea, João tentou acalmar-se, evitou olhar pelo retrovisor. Acabara de ver e falar com o homem que todos procuravam, vendera-lhe pão e bolos, e agora estava novamente sozinho na carrinha, a pensar no que deveria fazer a seguir. Na aldeia, disse ao primeiro homem que encontrou na rua que tinha acabado de estar com o “Palito”. O outro não acreditou. Mas, perante as dúvidas de João - “não sei se o acuse ou não” -, incitou-o a chamar a Guarda. Perto das 16h00, cerca de 15 minutos após ter estado com Manuel, ligou para a GNR, que lhe pediu indicações sobre o local onde ocorrera o encontro. A custo, João regressou ao lugar, junto à figueira e aos carrascos. Os cães tentavam escalar a encosta, assim como os agentes da Guarda. “Depois disseram-me que tinham visto o sítio onde ele esteve a comer, porque tinha os sacos de plástico e migalhas.” Mas o rasto de Manuel “Palito” terminou ali. Nem os cães conseguiam farejar o caminho que ele tomara.
Vale da Vila, 7 de Maio, entre as 09h30 e as 10h00
Para chegar a Vale da Vila há apenas dois caminhos: uma estrada de curvas e contracurvas, sempre a descer, que começa em São João da Pesqueira; e um caminho agrícola, em terra batida, que serve apenas quem trabalha nas plantações de vinhas para o vinho generoso. O lugarejo, uma povoação no Vale do Douro com menos de 100 habitantes, não tem farmácia, nem centro de saúde, nem bombeiros, nem restaurantes, nem posto de correios. Os cães povoam as ruas estreitas e labirínticas, ladrando insistentemente a qualquer forasteiro. Foi isso que aconteceu a Manuel Baltazar. Durante toda a noite, o cão que Fernanda e Leonel Pinto deixaram de guarda à antiga casa da filha não parou de ladrar.
A habitação localiza-se a 200/300 metros do casario de Vale da Vila, e a sua construção não chegou a ser concluída: a filha e o genro do casal Pinto moraram no rés-do-chão, mas o primeiro piso tem apenas as paredes em tijolo, a abertura das janelas e não há telhado.
Tinham passado 12 dias desde o encontro de Manuel com João Pessoa. Tal como acontecia diariamente, foi Fernanda quem, entre as 09h30 e as 10h00, desceu a encosta até ao terreno que circunda a casa. Carregava um balde com comida para o cão e mal abriu a cancela viu um homem a descer as escadas externas que dão acesso ao primeiro piso da habitação. Fernanda estacou, poisou o balde e ficou em silêncio, a olhar para o homem que reconheceu como sendo Manuel Baltazar. Este viu-a enquanto descia as escadas, levou o dedo aos lábios e fez “shiu”. Na outra mão levava a caçadeira. Fernanda não se mexeu, o medo tolhia-lhe qualquer movimento. Manuel não estugou o passo, saiu calmamente do terreno e caminhou em direcção a um monte com oliveiras ordenadamente plantadas.
Fernanda deixou o balde para o cão no mesmo sítio e correu para casa. Contou o que acontecera ao marido, Leonel, e este contactou de imediato a GNR. “Disse-lhes para cercarem o monte porque ele não devia estar longe, mas eles vieram para Vale da Vila”, conta Leonel, antigo jogador de futebol do Sporting da Covilhã, reformado precocemente devido a vários problemas de saúde. Leonel conhecia “Palito”, costumava encontrá-lo num café onde se reúnem os caçadores da região, o “Bigodes”, em São João da Pesqueira. “Alguém o trouxe para Vale da Vila. Sabia-se que a casa estava abandonada e que ali podia estar seguro porque a GNR não andava nesta zona. Na verdade, a caminhar pelos montes, Trevões não fica muito longe daqui.”
Não se sabe quantas noites Manuel terá ali ficado, talvez apenas uma. E os vestígios que deixou no primeiro andar também não ajudaram a encontrar uma resposta. Fez uma cama no chão com alguns cobertores que tapavam uma cama de criança que a filha de Fernanda e Leonel ali tinha deixado; havia duas embalagens vazias de iogurte; e restos de sandes.
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Manuel Pinto Baltazar aguarda julgamento no Estabelecimento Prisional de Vila Real, em Trás-os-Montes. É acusado de dois crimes de homicídio qualificado e outros dois na forma tentada. O Ministério Público anunciou, entretanto, que vai solicitar em tribunal a revogação da pena a que tinha sido condenado em 2013, pedindo uma pena de prisão efectiva por violência doméstica. Será também uma forma de evitar que termine o prazo máximo de prisão preventiva antes do julgamento. Angelina poderia não estar a salvo.