O cordão de polícias fardados e não fardados começa a baloiçar com mais vigor por volta das 20h30. Nos primeiros lances de escadas, duas correntes de homens – uns com coletes reflectores da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia/PSP, secundados por agentes do Corpo de Intervenção da PSP – tentam conter a força de uma multidão compacta que procura subir a monumental escadaria que dá acesso à entrada principal da Assembleia da República.
Silenciam-se os assobios, as palavras de ordem, o hino nacional. As grades que rodeavam toda a escadaria e pequenos jardins adjacentes desapareceram, levadas em braços para trás da massa de manifestantes. Esses minutos de silêncio são um breve compasso de espera – os participantes no protesto parecem recuar uns passos para ganhar fôlego e lançam-se em nova investida.
A tensão sobre aquela zona de São Bento é palpável; um jornalista debita para um telemóvel: “em 74 foram os militares, em 2013 são os polícias”; os homens fardados abandonam os seus rostos sem reacção, impávidos, e denunciam nervosismo, segurando com força os bastões presos à cintura. À sua frente, prestes a invadir a escadaria do Parlamento, estão amigos, colegas, conhecidos. Que, algum tempo antes, lhes tinham gritado para se juntarem a eles: “Ó colegas, ó colegas, venham cá para baixo! Não estejam com essa cara! Estamos a lutar por todos, por todos!”
O cordão ganha mais balanço às 20h45 – é uma dança, uma luta sem agressões, uma disputa de forças e palavras. Dois dos homens que envergam coletes reflectores sobem para o meio da escadaria e levantam os braços, pedindo, apenas com as mãos abertas, para que a turba desista do braço-de-ferro com o Corpo de Intervenção da PSP. Não conseguem. Daí a cinco minutos, os manifestantes sobem para uma das pequenas áreas ajardinadas que ladeiam a escadaria e correm em direcção à entrada do Palácio. Os agentes do Corpo de Intervenção olham para eles e percebem que não vão conseguir estancar a fuga. Em segundos, todos os participantes no protesto estão a subir apressadamente a escadaria, empunhando bandeiras e gritando que “a polícia unida jamais será vencida”.
Chegam reforços, mas nesta noite os reforços consistem em apenas mais duas carrinhas, não lotadas, do Corpo de Intervenção. Desenha-se um novo cordão de segurança, recorrendo mais uma vez à ajuda dos manifestantes que usam coletes amarelos e laranja, sob as arcadas do Palácio de São Bento. Não há agressões, não se vê um bastão no ar. A multidão chegou ali e parou. Canta o hino e aplaude demoradamente os polícias que guardam o Parlamento. Há quem beije os capacetes dos agentes do Corpo de Intervenção da PSP; vêem-se abraços; um homem com a cara parcialmente coberta com um lenço entrega a um provável colega fardado um bastão e um par de algemas (“Estamos todos do mesmo lado”, diz, comovido); continuam a ouvir-se palmas; um outro homem cumprimenta demoradamente todos os agentes que compõem a corrente de segurança em meia-lua. Gradualmente, o silêncio regressa àquele espaço. São 21h05 e a manifestação traduz-se em conversas, em despedidas daqueles que partem de Lisboa para várias zonas do país. A desmobilização é lenta. Alguns olham ainda para trás e, já no largo defronte da Assembleia, batem novamente palmas. A PSP fardada recomeça o trabalho de repor as grades de ferro em torno de todo o recinto exterior do Parlamento. São 21h10 e esta manifestação não foi igual às outras.
Oito forças, milhares no protesto
Foram seis mil, oito mil, talvez 12 mil pessoas. Tal como acontece em todas as outras manifestações, também nesta a PSP, que estava dentro e fora do protesto, recusou avançar com qualquer contabilidade. Mas um chefe desta polícia, incumbido de acompanhar o cortejo desde o Largo Camões até ao Parlamento, dizia não ter dúvidas que ali estavam “uns milhares”.
Ao fim da tarde de 21 de Novembro, confluíram ao largo membros de todas as forças de segurança, oriundos de Braga, Vila Real, Portalegre, Évora, Viseu, Fafe, Coimbra, Porto,… “Quantos mais formos, mais força teremos”, observava um militar da GNR de Vila Real, 55 anos, ainda na rua do Alecrim, a caminho da concentração. Nas bandeiras, em t-shirts, nas faixas, nos cartazes liam-se as reivindicações da PSP, da GNR, da ASAE, do SEF, da Polícia Judiciária, da Polícia Marítima, da Guarda Prisional, da Polícia Municipal. Numa iniciativa inédita, membros de todas estas forças de segurança reuniram-se num protesto que pretendeu traduzir a indignação conjunta perante os cortes salariais e as medidas austeras vertidas no Orçamento do Estado para 2014. “Digam bem alto a vossa indignação! Gritem bastante e agitem as vossas bandeiras!”, incitava um elemento da organização ainda no Largo Camões. “Fomos patriotas para quê?”, perguntava um militar reformado da GNR, veterano da Guerra Colonial, que se estreava em manifestações. “Daqui para a frente venho a todas”, garantia, seguindo na cabeça do protesto.
Perto das 18h00, ouviu-se o rebentamento de três petardos entre o Largo Camões e o Chiado. Alguém gritou: “São os gauleses! Rebentam com isto tudo.” Um casal de turistas australianos parecia um pouco assustado, junto à entrada de um hotel de cinco estrelas naquela zona nobre de Lisboa. Questionaram um manifestante sobre o que se passava e quando se aperceberam do que se tratava, a mulher disse ter “vontade de chorar”. “Mas hoje talvez seja um bom dia para assaltar um banco!”, afirmou, rindo. “Bem, quer dizer, talvez não haja dinheiro no banco…” Ali perto, participantes e polícias fardados da PSP tiravam fotografias de família com os telemóveis. Na rua do Alecrim continuavam a subir homens e mulheres, em passo apressado, deixando para trás as camionetas que os transportaram até à capital e que ficaram estacionadas na avenida 24 de Julho, junto ao Tejo.
Às18h35, o desfile arrancou. Oito grandes faixas, agarradas por homens, abriram o protesto: “Pela dignificação profissional. Em prol da segurança dos cidadãos”; “Les Policiers Européens. Solidaires”; “Pelas promoções em todas as categorias profissionais”; “Dizemos BASTA! À exploração, discriminação e empobrecimento dos profissionais da Guarda”. Do altifalante instalado no tejadilho do carro que encabeçava o cortejo ouvia-se “Está na hora, está na hora de o Governo ir embora” ou “Passos escuta: os polícias estão em luta” ou “Polícia motivada, segurança reforçada”. Um manifestante solitário ainda ensaiou um “Cavaco escuta: os polícias estão em luta” e “Coelho, és um ganda fedelho”, mas as suas palavras não obtiveram eco. Não teve seguidores.
Já na avenida 24 de Julho, e quando a cauda da manifestação ainda estava a meio da rua do Alecrim, um grupo de 10 homens, vestindo sweat-shirts pretas estampadas com “Os Gauleses” a branco, irrompeu na cabeça do desfile. Braços no ar e cânticos novos: “Uma vergonha, vocês são uma vergonhaaaaa….”. Alguns membros da organização pediram-lhes para recuar – “exactamente aí atrás. Já nos entendemos ou não?” – e eles acataram a ordem, percebendo que, a partir de então, seriam vigiados pelos organizadores. Um repórter de imagem perguntou-lhes quem eram e porquê a escolha de “gauleses”. “Astérix, tás a ver?”, respondeu-lhe um deles, corpulento, gorro preto de lã quase a tapar as sobrancelhas. “Somos todos da Carregueira, onde estão os vip’s”, explicou.
Os “Gauleses” recuaram, mas à chegada à Assembleia da República, ganharam alento e retornaram à melodia da canção cubana “Guantanamera” para a versão popularizada em estádios de futebol: “Uma vergonha, vocês são uma vergonha…”
No interior do Parlamento já quase não estavam deputados, naquele que foi o primeiro dia do debate na especialidade do Orçamento do Estado para o próximo ano. Começou a chover. Mas por breves minutos. Eram 19h40 quando os primeiros manifestantes se apoiaram nas grades de protecção. A subida da escadaria não tardou.