“54 milhões, 435 mil, 987. O concelho associado ao cupão premiado é Ferreira do Alentejo! Mais um contribuinte feliz, mais uma factura da sorte, mais um carro para si.” A apresentadora de lábios pintados de vermelho sorri para a câmara. No televisor vê-se agora um exemplar igual ao sorteado: um Audi A4 2.0 TDI com 136 cavalos, no valor de 40 mil euros.
Do primeiro sorteio da Factura da Sorte, que se realizou no dia 17 de Abril, saíram dois premiados. O primeiro carro foi para um contribuinte da Amadora, o segundo para o Alentejo. Apenas é revelado o concelho onde o felizardo tem domicílio fiscal, não se diz o nome, nem se revela o número de contribuinte. Mas se a Amadora é grande de mais para procurar o “contribuinte feliz”, o mesmo não se pode dizer de Ferreira do Alentejo, uma vila que fica a poucos quilómetros da capital de distrito, Beja, onde ainda toda a gente se conhece. Era de esperar que dias depois, capas de jornais e televisões se enchessem de declarações e fotografias de um tão feliz pagador de impostos, ao lado do seu novo bólide. Mas os dias passaram, as semanas também e nada.
Começam os primeiros contactos. Uma amiga que nasceu lá, um telefonema para os pais, e chega uma pista. “É um familiar da senhora que tinha uma mercearia onde agora é o restaurante ‘O Chico’.” Já não é pouco. Chegando a Ferreira do Alentejo é fácil encontrar o restaurante.
Os sorrisos rasgam-se quando se fala do “carro das facturas”. E a resposta surge a uma velocidade inesperada: “Foi o senhor Manel, sim, ele é o nosso senhorio, em tempos a mulher dele teve aqui uma mercearia. Vive em Canhestros. Ele é taxista, quer o número?” Chico faz o telefonema enquanto vai contando a história daqueles dias que se seguiram ao sorteio. “Ele ligou-me a perguntar se se falava muito aqui do Audi e acabou por se descair, agora não sei se foi a ele se foi ao filho, também dizem que foi ao filho.”
Manuel Valente é um homem dado à brincadeira, sempre a mangar de tudo. Por isso é difícil convencê-lo de que queremos uma entrevista com ele, para saber se ele é mesmo um “contribuinte feliz”. Conseguimos marcar um encontro para a tarde. Manuel estava em Beja em serviço e tão cedo não chegaria a Ferreira do Alentejo.
Uma volta pela vila – já está muito calor perto do meio-dia, pouca gente anda pelas ruas de casarios brancos – e a cada pessoa que se encontra uma suspeita nova surge. Na mercearia de José Luís Correia há já algum tempo que o carro deixou de ser assunto, mas logo a seguir ao sorteio também lhe chegou aos ouvidos que o taxista tinha sido premiado. “Ele não o levantou, então como é que se tem dinheiro para pagar os impostos e a manutenção daquilo?”, questiona o merceeiro, não sabendo, porém, que o bólide vem livre de impostos e com dois anos de manutenção pagos. “O que é bom é quando sai dinheiro, a minha filha ganhou aqui há uns anos, bastante, naquele programa da ‘Roda da Sorte’. Isso é que foi bom”, afiança José. Quanto ao negócio, tudo na mesma, não foi pelo carro ter feito um “contribuinte feliz” em Ferreira que os outros passaram a pedir facturas. “Ninguém pede.”
Derrapagem
Às três da tarde já só se consegue estar à sombra na vila alentejana, o que torna a espera por Manuel Valente um pouco mais difícil. Depois de meia hora de atraso, Manuel atende o telefone para dizer que não pode vir. “Audi? Ainda não vi nada! Começaram para aí a gozar e a dizer que foi a mim que saiu mas não foi. Nem eu podia esconder uma coisa tão grande! Olhe, tenho aqui mais outro serviço, boa tarde.”
No restaurante ninguém se surpreende. Chico conta que, passados uns dias do sorteio, Manuel veio desdizer-se: afinal, não tinha ganho carro algum, estava só na brincadeira. E Isabel, a empregada, avança que o vencedor é outro, de seu nome Marco Inverno, um rapaz que vive em Canhestros, a mesma aldeia onde habita o taxista. “Naquele dia, no Facebook, estavam todos a dar-lhe os parabéns pelo carro”, conta.
São cerca de 15 quilómetros entre Ferreira do Alentejo e Canhestros. Com perto de 400 habitantes, a aldeia, atravessada por uma Estrada Nacional que desemboca numa rotunda decorada com miniaturas de casas e com o nome da terra inscrito num enorme painel em pedra, ainda não viu nenhum Audi A4 por ali estacionado. É certo que o prazo de noventa dias para levantar o bólide ainda não passou. Mas depressa se desvaneceu a conversa sobre o “contribuinte feliz” de Canhestros.
Está fresco dentro do edifício da junta de freguesia, um dos mais imponentes da aldeia, com paredes brancas e janelas de alumínio amarelas, a condizer com os estores. Já não há vestígios da explosão que há ano e meio sobressaltou a terra, quando dois encapuzados tentaram rebentar com gás a máquina Multibanco, instalada dentro da junta.
Maria José está sentada atrás do balcão. Luísa, Rosita e José ocupam as cadeiras do lado de fora. Parecem estar à espera de serem atendidos, mas não, estão apenas ali, talvez a passar tempo. O chão é de azulejo e o pé direito muito alto. É por isso que a voz de qualquer desconhecido que ali entra aumenta de volume e torna-se impossível alguma discrição. Todos ouvem o propósito da visita e todos, prontamente, se disponibilizam a dar a sua opinião.
Luísa, uma mulher loira, de t-shirt azul, afasta de imediato a suspeita levantada horas antes por Isabel, a empregada do restaurante de Ferreira do Alentejo. É tia de Marco Inverno e assegura que o sobrinho não ganhou o carro das facturas. “Se lhe tivesse saído já andava aí com ele a mostrar a toda a gente, é um rapaz novo.” Rosita explica como começou esta história: “Nesse dia no Facebook o carro saiu a toda a gente da aldeia. Era tudo a gozar.” Rosita, prima de Manuel Valente, o primeiro “suspeito”, afiança que o primo, tendo sido o contemplado, nem trazia a viatura para a terra, “passava-o logo a notas, ninguém sonhava”.
Certo é que o carro saiu ali no concelho. Maria José, a funcionária que vai rindo atrás do balcão, avança com outra possibilidade: “Pode ter saído a um idoso que nem faz ideia de como reclamar o prémio, nem tem Internet para ir ver, nem é gente registada.”
Assim que o contribuinte é sorteado, aparece quase de imediato no Portal das Finanças, na página do contemplado, a informação de que é o vencedor. Mas é preciso ter uma palavra-passe para entrar. Em todo o caso, uns dias depois, é enviado um email ou uma carta para a morada fiscal. Depois, é necessário ir à repartição de finanças da zona e aguardar que lhe seja indicado o stand mais próximo onde poderá ir levantar o carro.
Em Canhestros ainda ninguém viu um Audi novo em folha a rasgar o asfalto. “Durante quatro ou cinco dias só se falava nisso e até esteve cá a TVI a fazer perguntas, mas o carro não aparece. Quem tem o carro?”, interroga-se José Venâncio. Rosita remata: “Aqui em Canhestros há muitos mistérios.”
Já são quatro e meia da tarde e o bar da Associação Cultural, Desportiva e Recreativa de Canhestros fechou. Talvez por isso esteja cheia a esplanada do restaurante ‘Gatinho’. Uma dezena de locais vai discutindo o assunto e perguntando a cada um que vai chegando, com ar gozão, se é o feliz contemplado. “Ó Maria, foi a ti que saiu o carro?” E riem à gargalhada.
A dona do restaurante junta-se à conversa. “A mim não foi, mas deviam dizer logo quem é. Deviam dizer e pronto!” Está zangada. Uma voz soa baixinho: “O que eu ouvi dizer é que saiu ao Doutor Lopes, de Ferreira. Ao advogado.” Diz isto com o encolher de ombros de quem pensa que os prémios saem sempre a quem menos deles precisa. “Também já ouvi falar nisso”, assegura uma outra mulher que acabou de se juntar ao grupo.
De volta a Ferreira do Alentejo, é fácil encontrar o escritório de Francisco Palma Lopes. Toda a gente o conhece. Abre a porta sorridente e, recostado na cadeira de pele, solta uma gargalhada quando sai a pergunta: “Foi o senhor que ganhou o Audi?”
“Não fui eu, mas olhe que até já me telefonaram a dar os parabéns. Já me ligou muita gente, a verdade é que não faço ideia de como o meu nome apareceu ligado a isso. Mas olhe, o que me disseram é que foi um taxista de Canhestros…” Aquele, cuja mulher tinha uma mercearia onde agora é o restaurante ‘O Chico’.