Manuel Londreira está sentado num café e ouve a conversa que se desenrola na mesa do lado. Dois homens falam sobre o sobrinho de um deles, deficiente motor, que tem dificuldade em mexer no rato do computador. Já havia destruído oito, e sentia-se frustrado por não conseguir dominar o pequeno objecto. “Enquanto os ouvia processava na minha cabeça as imagens que constituíam a resolução para aquele problema. E imediatamente encontrei-a.” Manuel levanta-se da mesa e anuncia aos homens ao seu lado: “Tenho a solução.”
Estávamos em 2005 e Manuel Londreira nunca tinha tocado num computador. Por isso o próximo passo foi ir a uma loja de material informático e levar para casa ratos já avariados para perceber como funcionavam. “Juntei os ratos e cheguei a um protótipo.” A imagem que Manuel Londreira tinha na cabeça, naquele dia, no café, transformou-se num aparelho que, dispensando a destreza e a motricidade fina que um rato normal exige, era apenas constituído por botões que, pressionados, faziam o cursor movimentar-se, estabilizar e abrir um documento ou uma aplicação. O primeiro aparelho a ser construído foi depois melhorado e testado com alunos da Cerciaz – Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas de Oliveira de Azeméis. O invento foi bem acolhido pelos utilizadores e superou até a expectativas do criador: “A psicóloga da Cerciaz disse-me que não só o rato facilitava a utilização do computador como também estimulava os tetraplégicos, funcionando como fisioterapia.”
Levou o produto à maior feira internacional de invenções, em Genebra, e ganhou uma medalha de prata. Até lá, teve uma formação relâmpago em informática. “Aprendi em meia hora a ligar e a desligar um computador, a desbloqueá-lo com o ctrl + alt + del e a pôr um cd. Nem sabia das potencialidades que um computador tinha. Já os tinha visto, mas nunca tinha mexido em nenhum”, conta.
Manuel Londreira tem 51 anos e a quarta classe. É o terceiro de seis filhos de um casal de São João da Madeira, com poucos recursos financeiros. Por isso não prosseguiu os estudos. Desde muito novo ajudava o pai, sapateiro, a endireitar os pregos que se iam estragando durante a reparação do calçado. Nessa altura já construía carrinhos de rolamentos, mas não sabia que tinha dentro de si uma apetência especial para a invenção. Também não se apercebeu mais tarde, aos 17 anos, quando foi trabalhar para uma fábrica de calçado e passava os dias a pensar como modificar a máquina com que trabalhava. Nunca achou que isso lhe poderia dar dinheiro, nem que toda aquela informação que lhe matraqueava a cabeça, de dia e de noite, poderia tornar-se numa profissão.
Medalhas, plágios e televisões
“Tenho uma média de trinta ideias na cabeça, soluções para problemas que neste momento o país tem, soluções para empresas, para pequenos problemas que surgem em casa. Para mim tudo é um desafio”, conta Manuel Londreira, sentado à secretária do espaço ocupado pelo N3i – Núcleo de Inventores, Investigadores e Investidores, ao qual preside, e que está situado em São João da Madeira. Na única estante que existe naqueles trinta metros quadrados estão as medalhas ganhas nas feiras internacionais de inventores, os protótipos de algumas das suas mais famosas invenções e livros. Entre eles “A Vacina Mecânica”, escrito por Aniceto Pires, que narra as dificuldades que os inventores têm em ver reconhecido o seu trabalho, mas principalmente em serem pagos pela criação, já que o plágio é recorrente e por isso tantos e tantos vivem com poucos ou nenhuns recursos.
Manuel Londreira não escapa à má sorte e por isso uma das cartas que repousa em cima da secretária é uma notificação do tribunal onde corre um processo no qual Manuel Londreira acusa 27 empresas de o plagiar. “É mais fácil fazer o plágio do que estar a repartir dividendos com os inventores”, explica. Mas não vai desistir, por muito grandes e poderosos que sejam os seus opositores. O motivo do plágio: o sistema anti-carjacking que lhe valeu a primeira medalha de ouro no Salão Internacional das Invenções de Genebra.
A ideia apareceu como sempre aparece. Quase do nada. Foi em 1996. “Eu trabalhava numa empresa de segurança em Oliveira de Azeméis quando o carro de um sobrinho meu foi roubado. Apesar de ter participado o roubo à polícia, ele teve imensos problemas porque passado pouco tempo o carro começa a andar envolvido em assaltos. Então eu pensei: isto se se ligasse o alarme do carro ao telemóvel era fantástico. Podia estar em casa a descansar e se acontecesse alguma coisa ao automóvel eu recebia uma informação no telefone.” A ideia andou a moer-lhe a cabeça durante muito tempo. Foi à Phillips apresentar a solução, mas eles não tinham os meios necessários; depois recorreu à Universidade de Aveiro, e nada aconteceu. Até que decidiu fazer um registo de patente. E por ali ficou, porque não tinha dinheiro para mais nada.
Passaram anos, até Manuel Londreira dar de caras com um jornalista do Comércio do Porto que o ouve a falar da ideia a uma outra pessoa. Dirige-se a ele e pergunta-lhe se pode fazer uma notícia a respeito do sistema anti-carjacking. Manuel Londreira ficou tão espantado que a primeira pergunta que lhe fez foi: “Quanto tenho de lhe pagar?” A notícia saiu e foi-se espalhando, mas nada mais que isso. O passo seguinte foi levar o invento ao salão de Genebra.
Passou noites acordado no espaço que tem reservado em casa, em São João da Madeira, para testar as suas invenções. Comprou um carrinho de brincar e ali montou todo o sistema que tinha engendrado. O carro estava ligado a um telemóvel que dava ordens e recebia informação. Abria e fechava as portas, bloqueava a ignição, accionava um botão de pânico.
Manuel Londreira teve de poupar tudo o que pôde para se meter num avião e ficar três dias na Suíça, a comer sandes de manhã, à tarde e à noite. Na bagagem levava o carrinho. “Quando cheguei lá só pensei, onde é que eu me vim meter? Eram 45 países representados, mais de mil invenções e eu com um carrinho dentro de uma mala, com umas baterias. Foi como chegar lá de Fiat 127 e só ver Ferraris. Pensei, como é que eu vou ganhar esta corrida?” Mas ganhou. “Eu só falo português, por isso foi uma pessoa que veio avisar-me que eu tinha ganho uma medalha de ouro, nem me acreditei, nem me apercebi.”
Pensava Manuel que iria chegar a Portugal, qual medalhado olímpico, recebido em ovação no aeroporto, pronto a colher os louros do seu invento. Bom, talvez nem tanto, mas quase… Pensava pelo menos que a distinção lhe iria trazer frutos, ou seja, dinheiro em troca do seu trabalho. “Fui novamente notícia, tornei a fazer contactos, mas acontece que toda a gente ignora estes prémios. Só dão valor ao futebol. Não tenho nada contra o desporto, mas se o Ronaldo é jogador de pernas, eu sou jogador de cabeça.”
Não há serviço noticioso televisivo que não tenha mostrado as invenções de Manuel Londreira. O rato para deficientes na TVI, o sistema anti-carjacking na SIC, a porta inteligente na RTP. Esta última invenção é a única que o liga a uma empresa que produz as portas – a porta detecta fugas de gás, inundações, pode ser aberta através do telemóvel, e tem também um botão de pânico (aliás, a patente do sistema anti-carjacking serve também para este produto). O invento anti-carjacking também lhe valeu uma parceria com uma empresa, mas, segundo o inventor, as coisas correram mal e essa parceria deixou de existir, embora o produto continue a ser comercializado.
A solução para a crise
Novembro de 2010. Uma voz off anuncia na televisão: “A crise pode ter os dias contados.” Sobre a imagem de Manuel Londreira, mais novo, mais gordo e com um ar mais feliz, ouve-se: “Este homem tem uma proposta para os problemas financeiros do país.” José Gomes Ferreira, editor de economia da SIC, afiança logo a seguir: “É uma excelente ideia, faz falta em Portugal.”
A ideia era simples: a partir dos talões que saíam das máquinas registadoras nos estabelecimentos comerciais – todas ligadas a um terminal das Finanças - dar prémios diários, em dinheiro, sorteados em cada município do país. Incentivava-se assim o consumo, as Finanças teriam o registo de todas as transacções comerciais e arrecadavam por isso muito mais impostos. Londreira teve esta ideia em 2008, a SIC noticiou-a em 2010. Manuel Londreira enviou então mails para os governos regionais dos Açores e da Madeira, para todas as câmaras municipais, para o Governo, para os grupos parlamentares, para a Presidência da República, para os Governos Civis entretanto extintos. Todas as respostas, e foram muitas, estão arquivadas num dossier que tem consigo.
A ideia foi bem recebida, de tal maneira que Manuel Londreira diz que chegou a ter uma reunião com João Durão, em 2010 sub-director geral dos impostos durante o Governo de José Sócrates. “Foi no dia 13 de Dezembro, com o cartãozinho número 13, na sala 13”, recorda. Nesse dia foi recebido no Ministério das Finanças, em Lisboa, por João Durão e a sua equipa. Segundo o inventor todos gostaram da ideia, embora tivesse sido alertado para o facto de o Orçamento do Estado já ter sido aprovado e por isso teria de esperar. Mas passado pouco tempo o Governo caiu e a proposta ficou suspensa mais uma vez.
Manuel Londreira não desistiu, porém. Dois anos depois, a 15 de Dezembro de 2012, numa peça da RTP, apareceu a entregar um dossier ao primeiro-ministro. Deram um aperto de mão, Londreira disse a Passos Coelho que tinha ali a solução para a crise e o chefe do Governo respondeu, já a entrar para o carro: “Sim senhor, vou ver, obrigado.”
Manuel Londreira não queria por isso acreditar quando ouviu o Governo anunciar o sistema de facturação electrónica e o sorteio dos carros sem nunca falar do seu nome. “Foi uma falta de respeito por uma coisa que ele viu, teve-a nas mãos, se leu ou não, não sei… E depois vem para a televisão dizer que Portugal vai ter facturação electrónica, que é uma ideia do Brasil e mais não sei o quê. Se calhar não aceitam que pessoas com a quarta classe tenham uma ideia fantástica. Nunca na vida pensei que houvesse necessidade de um Governo plagiar um projecto”, desabafa.
A ideia de Manuel Londreira era diferente da actualmente desenvolvida pelo Governo. O inventor diz que a dele é muito melhor. “Quando comecei a pensar nisto parti do princípio de que era preciso trazer as pessoas de novo para a rua, porque com a crise elas deixaram de ir aos cafés, almoçar fora, ir ao cinema. E por outro lado queria fechar o círculo ao dinheiro, de forma a que todos pagassem os seus impostos. Como é que tudo funcionava? Todos os estabelecimentos tinham um terminal ligado às Finanças de cada município, que, por sua vez, conectava com um terminal central, nacional. Todas as transacções eram registadas e processadas, independentemente de se dar o número de contribuinte, porque há muita gente que não dá, porque não quer que se saiba onde gastaram o seu dinheiro. O talão teria um código de barras e todos os dias era sorteado um valor em dinheiro, 500 ou mil euros, por cada município. No dia seguinte as pessoas iam com os talões aos cafés ver se tinham o número premiado. Para isso usavam máquinas parecidas com as do Euromilhões. Depois deitavam os talões fora. Vale de tudo, desde a chicla à compra de um carro.”
Para Manuel Londreira, não faz sentido que seja preciso dar o número de contribuinte para que a transacção seja registada, muito menos acredita no sorteio de um carro. “Se o carro sair a uma pessoa pobre, cheia de dívidas, ela tem de se desfazer do carro. Vão aparecer os abutres à espera das oportunidades e, com dinheiro vivo, chegam à beira daquela pessoa e dizem: quer vinte mil em dinheiro já? O que é que isto mexeu na economia? Zero. Quem ganha? Ninguém. Quem perde? Todas as empresas e o Estado”, explica. E nem só os portugueses colectados nas Finanças poderiam receber o prémio. “Qualquer turista podia ser sorteado. Agora imagine-se um turista que vem a Portugal, bebe um café e sai-lhe 500 euros. Pagou as férias! Chega ao país dele e é logo a primeira coisa que conta.”
Em parceria com o contabilista Vítor Dias, Manuel Londreira estimou que, com o valor que o Estado arrecadaria de impostos a partir deste sistema, bastaria 9% do ganho para pagar os prémios e um investimento de 1% para implementar todo o sistema informático.
Apesar de o modelo seguido pelo Governo ter diferenças, Manuel Londreira não se conforma e vai enviar uma carta ao Ministério das Finanças a exigir os direitos de autor que lhe assistem por uma ideia que já havia apresentado. “Então eu ando a trabalhar por alma de quem?”
O inventor anda desanimado. Guardou o livrinho preto onde aponta as ideias a um canto, só mesmo a mulher e os amigos mais próximos não o deixam desistir de pensar. Recebe o subsídio de desemprego, que termina em Junho. E consome-se com a quantidade de vezes em que vê o seu trabalho utilizado em proveito de todos menos dele. “Quando temos este talento e as pessoas nos ignoram sentimo-nos vazios, sozinhos. Só que alguma coisa também nos toca porque se nós não resolvemos um problema, se não andamos em busca de soluções, ficamos doentes. Parece que é um bicho que nos aperta aqui em cima e que nos diz, tens de ir fazer, tens de ir resolver.”
A mais recente invenção de Manuel Londreira permite limpar uma máquina de lavar roupa em meia hora de modo a que fique como nova. Como funciona? É segredo.