O computador portátil, comprado há um mês, nunca sai do colo de Teresa Lopes. É entre cliques incertos, de quem ainda não se habituou ao computador, num jogo de Mahjong que a aposentada de 71 anos deixa o primeiro desabafo sobre o estado do país a partir da sua casa num 5º andar na Reboleira, Amadora.
“Há 2 meses tive um AVC, e por cima disso ainda me disseram que tinha um aneurisma na aorta e um enfisema no pulmão”, informa. “Há três meses que o médico me disse que tenho uma bomba relógio dentro de mim, e desde esse altura estou à espera de ser operada. É de uma pessoa sentir mesmo bem, não é?”, ironiza, sentada como se estivesse lentamente a escorregar para fora do sofá de dois lugares, ainda amarelecido pelo fumo de quem largou o tabaco há apenas 3 meses. “Ao estado a que isto chegou… Estamos a andar para trás.”
Sem surpresa, a televisão está sintonizada na TVI24. Desde que se reformou, aos 66 anos, Teresa liga praticamente todos os dias para o programa da tarde, Discurso Directo, onde os telespectadores são convidados a deixar a sua opinião. “Eu falo sobre tudo, menos de futebol, nisso não me meto. Eu digo que sou do Benfica, mas isso é só de ta-ra-ta-ta-ta-ta”, diz, e bate com os dedos na garganta.
Embora esteja habituada a falar sobre vários temas, há um que diz tirá-la do sério: a Função Pública. “Sempre que oiço dizer que os funcionários públicos são uns preguiçosos e que não pagam impostos, aí têm a Teresa no seu melhor!”
Quando chega a altura de entrar no ar, Teresa já sabe como agir. “É preciso saber fundamentar aquilo que se vai dizer, porque podem vir perguntas adversas, e nós temos de saber responder bem para não fazermos figura de parvos. No início da chamada digo sempre ‘Boa tarde a todos’. Não faço como os outros, que estão ali ‘gosto muito do seu trabalho’, ‘queria cumprimentar o seu convidado’… É preciso ter noção de que um minuto em televisão é muito tempo, por isso não nos podemos prolongar. Depois também não se se pode dizer palavrões… E é isso. Depois é ir falando.”
E os outros, garante Teresa, ouvem-na. Já tem acontecido outros intervenientes do programa ligarem-lhe, depois de conseguirem o seu número através da produção do Discurso Directo, para elogiarem as suas participações. As irmãs, que sabem que Teresa, a mais velha de todas, gosta de telefonar para este tipo de programas, ligam a televisão só para a ouvirem. “Hoje foste brilhante!”, já lhe disse uma delas. Há também ocasiões de discórdia, como uma vez em que, em reacção a uma intervenção em que Teresa passou “o tempo todo a dar porrada no Cavaco”, um outro ouvinte, “um tipo ali da Damaia (…) queixou-se de que eu falava demasiadas vezes, que era muito estranho eu ter sempre antena e os outros não”. “É assim, faz parte, nem sempre todos podem concordar uns com os outros, faz parte da vida num país democrático.”
Não foi nesse Portugal que Teresa nasceu e cresceu e, apesar de guardar um bom punhado de histórias desses tempo, esta aposentada (“reformada não, porque eu sou da Caixa Geral de Aposentações”) quer ver o Portugal do Estado Novo pelas costas.
De Almeida à Amadora
Teresa Lopes nasceu em Almeida, no distrito da Guarda, em 1941. Filha de Horácio, contabilista, e de Margarida, professora primária e a sua maior referência, Teresa ouviu um dia a mãe dizer ao pai: “Oh Horácio, as meninas já estão matriculadas.” Mais concretamente no liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, em Lisboa, onde, à falta de alternativa na Guarda, Teresa, a mais velha, e a irmã que se lhe seguia, iriam prosseguir os estudos.
O pai não queria sair de Almeida. A mãe, ia a década de 50 a meio, respondeu-lhe: “Ou vens para Lisboa e continuas a ter mulher e filhas, ou então ficas aqui sem nada.” A decisão já estava tomada: a família inteira, pais e oito filhas, iria mudar-se para Lisboa, mesmo que isso implicasse passar de uma casa com 12 assoalhadas para outra com um só quarto.
Teresa não gostava da escola. Não tinha amigas nem conhecia ninguém, e ela própria era um alien no meio lisboeta. “Eu ia para o liceu à balda, não era como o resto das meninas, que vinham logo todas encasacadas assim que viesse um bocado de frio. Lá em Almeida até neve faz, ora. E as outras miúdas viravam-se para mim e perguntavam-me: ‘não tens frio ou não tens casaco?’. Eu respondia-lhes ‘frio não tenho, quanto ao casaco tenho aqui duas mãos para te partir toda’. E atirava-me a elas!”
Aos 17 anos, depois de o pai sofrer um acidente e ficar desempregado, teve de ir trabalhar. “Eu só queria uma coisa: mais dinheiro, mais dinheiro, mais dinheiro!”, diz, cantarolando a palavra “dinheiro”. Tentou arranjar emprego na mesma empresa de onde, noutra altura, o pai tinha sido despedido por justa causa. “Então o que é que a menina sabe fazer?”, perguntou-lhe o dono da empresa. “Nada!”, respondeu-lhe Teresa. Ficou com o emprego, mas por pouco tempo. “Foi até ao dia em que o meu patrão teve a belíssima ideia de me apalpar. ‘Venha ao meu gabinete’, disse-me ele. E eu lá fui. Quando ia a fechar a porta do escritório, ele saiu lá de trás e apalpou-me as mamas. Eu virei-me contra ele e dei-lhe com um cinzeiro de cristal na cabeça. Ele ficou a esvair-se em sangue no chão e teve de levar sete pontos.” Demitiu-se e teve direito a indemnização.
Seguiram-se seis anos no emprego que mais saudades lhe deixou, na Nobre & Silva, Lda. – “a melhor fábrica de plásticos do país”, na Amadora. Desta vez, na entrevista de emprego, já dizia saber “fazer tudo”. Ficou como secretária e, embora trabalhasse na divisão administrativa da empresa, “estava sempre em contacto com os operários”.
Foi nesses anos que Teresa, avessa ao Estado Novo, que ia então no fôlego marcelista, ganhou a atenção da PIDE. Ao lado da fábrica onde trabalhava, ficava localizada a metalúrgica SOREFAME. Em dias de greve, Teresa abria as portas da fábrica de plásticos para ajudar os grevistas a fugirem da polícia política. Fê-lo até saber, através do seu patrão, que a PIDE também estava atrás dela. Corria o ano de 1972, e Teresa emigrou para Estrasburgo, onde ficou a lavar pratos num restaurante.
Na Páscoa de 1974 voltou a Portugal e, a certa altura, sabia que já não ia voltar. “Eu era amiga do Otelo, e de outros capitães do MFA”, diz, sem se querer alongar em nomes. Foi por eles que ficou a saber do que se ia passar na noite de 24 para 25 de Abril. Tanto que tinha voo marcado para voltar para Estrasburgo, às 7h30 do dia 24. Mas, se tudo corresse bem, já não fazia sentido voltar para França. Em antecipação, comprou uma garrafa para a festa que se ia seguir. “No dia 24 de Abril estava calmamente em casa à espera a ouvir rádio. E depois começou a Grândola Vila Morena.” Foi buscar a garrafa para abri-la. “Foi uma festa tão grande que só me deitei no dia 27! Abri as portas cá de casa, foram lá ter uns quantos galfarros que me comeram tudo o que tinha na cozinha!”
O que faz falta
Em Novembro de 1974 começou a trabalhar no sítio que iria ter como segunda morada até à sua reforma, em 2008: a Direcção Geral de Pescas. Mais uma vez, fazia trabalho de secretariado. No ano seguinte teve uma filha com um parceiro que durou pouco na sua vida. “Ele faltou-me ao respeito, e eu pu-lo fora de casa. Disse-lhe que a casa era minha e a rua era dele. Fora!” Desde então que se considera “mãe solteira”.
De 1995 a 2000 foi requisitada para trabalhar no gabinete do secretário de Estado do Desporto, Júlio Miranda Calha, durante os Governos de António Guterres. Uma das muitas funções que tinha era ler a imprensa nacional, com especial atenção para a desportiva, e acompanhar programas televisivos e radiofónicos onde o desporto fosse tema. Por fim, teria de elaborar um relatório que avaliasse a opinião pública. “Se houvesse alguma coisa de que muitas pessoas dissessem mal, então eu tinha de escrever tudo, para apresentar ao secretário de Estado.” “Eu sei que ainda há gente nos gabinetes dos ministros a fazer isto mesmo. Eu sei que eles nos ouvem, não sei é se dá nalguma coisa… Mas água mole em pedra dura…”
E porque é que liga para a TVI tantas vezes? Teresa endireita as costas, tira os olhos do Mahjong e responde a cantar: “O que faz falta é avisar a malta/ O que faz falta/ O que faz falta é avisar a malta/ O que faz falta…”