Quando faz de Cliente Mistério, Catarina, 62 anos, transforma-se. Acorda, ainda em si, mas quando abre o guarda-roupa já não é ela própria.
“Há dias em que sou a dona de 50 milhões de euros que quer depositá-los num banco, há outros em que sou a pobrezinha sem emprego que vai ao supermercado comprar manteiga.”
Nos dias em que faz de “pobrezinha”, uns ténis e uma calças de ganga não têm como levantar suspeitas no corredor de um supermercado. Mas quando faz de milionária, os requisitos são outros. Se a dona de 50 milhões de euros quer ir a um stand comprar um carro de alta cilindrada, a roupa já muda. “Aí visto um fato preto, porque com preto nunca me comprometo. Tenho o cuidado de ir com as unhas pintadas, arranjo o cabelo e levo uma mala a condizer com os sapatos.”
Quando o vendedor de automóveis se aproxima da senhora de preto, só um deles sabe o que está a realmente a acontecer. E assim continuará a ser, desde que Catarina se mantenha calma e serena, sem nunca demonstrar insegurança nem medo. A experiência ajuda-a: em 20 anos a fazer de Cliente Mistério, Catarina nunca foi apanhada em falso.
Fora do ângulo de visão do motorista, José, 23 anos, acomoda-se num dos bancos de um autocarro urbano com um caderno aberto no colo. Assim que se senta, rabisca que o condutor foi antipático para o cliente que estava mesmo atrás dele na fila para comprar bilhete.
À medida que o percurso continua, sem que tenha havido qualquer outro problema digno de nota, José julga que não terá muito mais a observar. Basta esperar calmamente até que o autocarro chegue à última paragem. Mas, quando o caderno já está quase para ser fechado, entra no autocarro uma senhora com um carrinho de bebé. Fixa-se no lado esquerdo do autocarro, mesmo em frente à porta de trás, onde há mais espaço para o carrinho e onde a segurança é maior. É então que o erro acontece. O condutor esquece-se de fechar a porta do autocarro, ao mesmo tempo que investe numa curva a uma velocidade fora do normal. Enquanto os restantes passageiros gritam para o condutor do autocarro e a mãe com o carrinho de bebé se refaz do susto, José aponta numa letra apressada tudo o que se passou ao pormenor.
Antes de entrar no banco, Rita, 25 anos, relembra todos os dados falsos que tem de apresentar ao funcionário que a vai atender: idade, profissão e situação financeira. “A minha personagem é sempre a pessoa que eu quero ser no futuro. A minha pessoa melhor. É fácil: eu imagino ‘eu quero ser assim’, e é assim que sou. Ganho bem, trabalho na minha área e estou a pagar uma casa.”
Sentada atrás do balcão, a funcionária nem viu Rita entrar. Estava atrapalhada, trocava umas palavras por outras, a fila de clientes impacientes só crescia. “Era uma rapariga que devia ser nova, não sabia o que estava a fazer. As pessoas já estavam ali há imenso tempo, e percebia-se que ela não estava a conseguir controlar a situação.”
Até ser atendida, e ao mesmo tempo que observa tudo isto, Rita revê mentalmente termos como “juros” e “spread”, confirmando as definições correctas para dentro de si como um estudante nervoso antes de um exame oral.
Depois de uma longa espera, Rita é atendida. Cumpre o guião que lhe foi entregue antes da visita de Cliente Mistério, e diz aquilo que lhe compete. A partir daí, a jovem bancária não pode falhar. Bastava encaminhá-la para o seu colega mais adequado para tratar da abertura de conta que Rita estava instruída para fazer. “Ela não fez nada disso, disse-me tudo ali à frente. Eu sabia que estava errado, mas, pronto, lá me fui embora.”
Se tudo correr bem a Catarina, a José e a Rita, ninguém os terá identificado como Clientes Mistério. Se tudo correr bem para os trabalhadores avaliados, nunca serão chamados à parte depois de os seus superiores lerem os relatórios que Catarina, José e Rita escreveram.
Patrão fora da loja
“Se eu mandar um auditor a uma loja e disser que ele está lá para observar e avaliar o atendimento, os colaboradores, por saberem que estão a ser avaliados naquele momento, não terão o seu comportamento natural”, argumenta Cristiani Oliveira, coordenadora do serviço de Cliente Mistério da Intercampus Lisboa, também ex-presidente e actual directora da Mystery Shopping Providers Association Europe. “O Cliente Mistério, por outro lado, como está a fazer o seu trabalho de forma anónima, acaba por viver as experiências como um consumidor normal. A variável de se saber que se está a ser avaliado não existe naquele momento.”
Cristiani está no seu escritório espaçoso num sexto andar em Lisboa. À medida que vai falando, o sotaque português é uma vez por outra beliscado pelo brasileiro, sinal de que mesmo 13 anos depois de ter saído do Brasil não esquece o seu país. Apesar dos mais de 30 graus que estão na rua, as janelas estão fechadas e os estores para baixo. É um escritório hermético, e não fosse o fim da conversa que ali aconteceu ter por fim este texto, quem estivesse fora daquele escritório nunca saberia o que lá foi discutido.
E se for despedido?
Tudo começa quando uma empresa quer avaliar os seus trabalhadores e a qualidade do seu serviço. De seguida, o patrão ou gerente em causa contacta uma das empresas acima mencionadas. Estabelecido o negócio, cabe à empresa de recursos humanos recrutar uma equipa de Clientes Mistério que farão, após leitura de um guião e formação técnica, visitas esporádicas, mas sempre programadas, à empresa que deseja ser avaliada. No fim, cada Cliente Mistério elabora um relatório e entrega-o à empresa de recursos humanos. Esta, por fim, valida o relatório, e entrega-o à empresa avaliada.
A partir do momento em que é dada uma avaliação negativa, é legítimo pensar se terá havido um despedimento por justa causa. E será legal?
“A utilização de um Cliente Mistério terá algumas similitudes com um meio de vigilância à distância”, começa por explicar Tiago Cortes, advogado e especialista em Direito do Trabalho. “Em ambos os casos o empregador consegue fiscalizar a prestação do trabalhador sem que ele disso se aperceba. O Código do Trabalho proíbe a utilização de meios de vigilância à distância, mas apenas mediante de emprego de equipamento tecnológico.”
“Por outro lado, a circunstância de o Cliente Mistério, a pedido e no interesse do empregador, falsear a sua identidade e a situação apresentada, poderá ser entendida como um comportamento violador do dever de boa fé que deve pautar a relação laboral,” argumenta Tiago Cortes. No entanto, o advogado acrescenta que “este risco ficará diminuído se a empresa divulgar junto dos trabalhadores a possibilidade da existência de Clientes Mistério.”
Em conclusão, Tiago Cortes considera que uma prova produzida por um Cliente Mistério poderá “ser aceite em tribunal na sustentação de uma infracção disciplinar” e justificar “um despedimento ou outra sanção, desde que a sua actuação não se reconduza à figura do agente provocador.”
Cristiani Oliveira garante que nunca teve conhecimento de um trabalhador que tenha sido despedido como consequência de um relatório elaborado por um Cliente Mistério coordenado por si. E, das poucas vezes que lhe pediram colaboração nesse sentido, recusou. “O Cliente Mistério não serve para esse fim, de todo.” Insiste que o propósito deste tipo de avaliações é as empresas perceberem em que áreas é que os seus trabalhadores precisam de mais formação. É um método de controlo e potencial melhoramento da qualidade do serviço prestado.
Mas, se por um lado, despedir por justa causa um trabalhador como consequência de uma avaliação de um Cliente Mistério poderia levar a uma batalha jurídica demorada e custosa, o mesmo não acontecerá com alguém que trabalhe a falsos recibos verdes. Desprotegido por qualquer tipo de vínculo contratual com a empresa para onde trabalha, esse trabalhador pode, de um dia para o outro, ser despedido na sequência de um mau relatório.
Confrontada com esta hipótese, Cristiani diz não ter “conhecimento de projectos nessa área.”
Quem são os Clientes Mistério? 
Se Cristiani Oliveira garante que o processo de recrutamento na sua empresa é apertado e minucioso – é costume alguém só ser chamado a trabalhar na Intercampus se já for conhecido e tiver a confiança de alguém que trabalha na empresa – há outras empresas que não funcionam assim.
Rita, por exemplo, não tinha qualquer experiência na área. Então com 23 anos, com uma licenciatura acabada que não lhe garantia nenhum emprego, enviou um email a uma empresa de Cliente Mistério. “Escrevi a dizer que estava interessada em fazer visitas de Cliente Mistério, depois preenchi o formulário de inscrição que eles têm no site. Eles deviam estar apertados, com poucas pessoas, porque chamaram-me logo um dia ou dois depois”, conta.
A maior parte dos Clientes Mistério estão muito mais próximos do perfil de Rita e de José do que de Catarina. São na maioria jovens, estudantes universitários ou recém-licenciados que, por não encontrarem emprego na sua área de estudos e por quererem ganhar algum dinheiro, aceitam este trabalho.
Os pagamentos variam consoante o tipo de visita e podem oscilar entre os 10 e os 30 euros. Depende do nível de dificuldade da visita e se há ou não deslocações.
Rita e José, que fazem visitas de Cliente Mistério ocasionalmente, já chegaram a receber 200 euros numa só semana. Catarina, que trabalha na Intercampus a tempo inteiro, embora a recibos verdes, recebe sempre mais do que o salário mínimo, e junta, no fim de cada ano, entre 15 e 17 mil euros. Este valor, porém, não resulta somente de visitas de Cliente Mistério, uma vez que Catarina também faz questionários de rua e outros estudos de mercado.
Para Catarina, a maior diferença entre si própria e a maior parte dos universitários que fazem visitas de Cliente Mistério é o profissionalismo. “Porque as pessoas de 22 e 23 anos fazem as visitas para pagarem os copos no fim-de-semana. Portanto, se perderem o trabalho, não é grave. Em vez de um shot, bebem só uma cerveja, que é mais barato. E eu não. Este é o meu ganha-pão.”
Cliente Mistério ao quadrado
“Eu tenho de fazer o meu trabalho como deve ser”, vai repetindo Catarina, sentada à mesa de uma sala de reuniões, à porta fechada, na sede da Intercampus. No centro da mesa estão dois microfones, cada um virado para o seu lado. Um deles, talvez por esquecimento, continua ligado. Numa das paredes está um vidro espelhado com cerca de três metros de extensão, fazendo lembrar o cenário em que, numa esquadra, uma vítima de um crime aponta para o suspeito.
Por fazer visitas de Cliente Mistério há mais de 20 anos, já há poucos segredos nesta actividade para Catarina. Sabe perfeitamente que há supervisores para os Cliente Mistério. Uma espécie de Cliente Mistério ao quadrado, em que o supervisor é supervisionado por uma pessoa incógnita e de maior confiança na empresa de recursos humanos. “Sei que isto é feito, mas nunca me apercebi,” adianta.
Continua falar de costas virada para o vidro. Explica que, por depender deste tipo de actividade para pagar as contas, não pode abrir mão de alguns princípios. Nunca tem remorsos. “Não há mesmo. Eu não posso ter remorsos por escrever no relatório que fui mal atendida quando tenho perfeita consciência de que foi isso que aconteceu,” diz, reconhecendo que é de uma frontalidade “brutal”.
Nada abala esta sua convicção: “É que se eu não faço o meu trabalho como deve ser, então a despedida sou eu. Ou eu, ou eles.”
José e Rita ecoam as palavras de Catarina, todas elas máximas invioláveis da indústria dos Clientes Mistério. Mas não conseguem esconder remorsos. Sempre que faz uma avaliação negativa, José pensa no condutor de autocarro que se esqueceu de fechar a porta. “Eu acho que, pelas minhas contas, não é caso para dar num despedimento…”, diz, mas sem grande convicção. Tal como Rita que, em relação à jovem bancária atrapalhada, formula um desejo: “Espero que não lhe tenha acontecido nada, mas não tenho a certeza…”
Enquanto Rita conta este episódio, na mesa ao lado, uma cliente atingiu um copo com as costas da mão e entornou a bebida para cima das mesas, cadeiras e chão. Um minuto depois, veio uma funcionária com um balde e uma esfregona. Demasiado concentrada em secar o chão, a senhora da limpeza não se terá apercebido se, entre todas as cabeças que se viraram quando o copo tombou, alguma estava a tomar notas mentais.