Armada com um revólver de plástico, Dulce assaltou 12 bancos

Sem cadastro, sem experiência, uma cabeleireira da classe média, mãe, a braços com uma pesada situação financeira e um desgosto de amor tornou-se um quebra-cabeças para a Polícia Judiciária. Ficou conhecida como “Viúva Negra”.

Rita Ferreira

Outubro 2013

Na parede de uma das salas da Polícia Judiciária (PJ) estão colados todos os fotogramas retirados das câmaras de vigilância de 11 dos 12 bancos que Dulce Caroço assaltou. Mostram uma mulher, nem muito alta nem muito baixa, nem gorda nem demasiado magra, sempre de óculos escuros, lenço na cabeça, boné ou peruca, mala a tiracolo. Entra no banco preferencialmente à hora de almoço, dirige-se ao balcão onde pousa uma arma que é apontada à funcionária da caixa, sempre do sexo feminino. Recebe o dinheiro e sai, tal como entrou. Sozinha.

As primeiras informações sobre a “Viúva Negra” - assim foi apelidada por aparecer de cabeça tapada e óculos escuros e por actuar sozinha - chegaram à PJ no dia 29 de Abril de 2011. Uma mulher entrou na dependência bancária do Banif da Parede, em Cascais, às 14h45, ameaçou a funcionária com uma arma e saiu com cinco mil euros na mala. Não houve feridos.

Cláudia Correia está nervosa. Chegou ao Campus da Justiça, em Lisboa, pela manhã, e foi conduzida ao espaço destinado às testemunhas, no terceiro andar do Edifício A. Não viu por isso Dulce Caroço entrar na sala de audiências, algemada, acompanhada por dois polícias. Dulce tem o cabelo arruivado, com caracóis que não vêem cabeleireiro há algum tempo, apanhado com uma mola. Veste um fato escuro, calças e casaco cintado, usa uma camisa branca. Não está maquilhada e calça sapatos rasos. Quando é chamada pelo oficial de justiça, Cláudia, 29 anos, cabelo impecavelmente esticado, maquilhada, sandálias de salto alto, magra e morena, apenas vê Dulce de costas. Senta-se no banco das testemunhas e começa a responder às perguntas da procuradora do Ministério Público. Assim conta como naquele dia, cuja data sabe de cor, uma mulher entrou no banco onde estava a trabalhar e se dirigiu ao balcão. “Disse-me boa tarde, mas logo a seguir avisou que se tinha esquecido de alguma coisa e saiu do banco. Passado um bocado voltou. Perguntei-lhe se já tinha o que queria e ela respondeu que sim, mas que estava à espera do marido. Quando saiu toda a gente do banco, ela chegou-se ao balcão onde eu estava, pousou uma arma que apontou na minha direcção e pediu-me que lhe entregasse todo o dinheiro. E ameaçou-me: ‘Não armes estrilho senão acabo com a tua vida num minuto’.”

Cláudia disse no tribunal que a mulher lhe parecia nervosa. Não sabia que aquela era a primeira vez que Dulce Caroço, 45 anos, uma cabeleireira de Portalegre, mãe de um rapaz então com sete anos, cometia um assalto. E o primeiro assalto foi o que rendeu mais dinheiro a Dulce. “Eu estava a fazer maços de notas e entreguei-lhe tudo. Eram cinco mil euros. Ela pegou nos maços e meteu-os na mala. Saiu em passo rápido, pareceu-me nervosa. Vinha vestida de preto e trazia uns óculos escuros. Tive muito medo, pensei que ia morrer”, conta Cláudia no tribunal.

Cláudia respondeu a todas as perguntas com alguma calma, apenas se exaltou quando o advogado de defesa de Dulce Caroço a questionou sobre a arma, que, sendo de plástico, não causaria propriamente grande ameaça. “Foi a primeira vez que me apontaram uma arma, para mim aquilo era uma arma, pensei que ela me ia dar um tiro e que eu ia morrer”, repete num tom de voz elevado. Quando Cláudia se levanta, depois de dispensada pela juíza, a cara transforma-se. Olha Dulce de frente e por segundos parece que vai direita a ela. A arguida baixa a cabeça e Cláudia passa ao lado, passo firme. Fica sentada a duas filas da mulher que está a ser julgada e que Cláudia, a par das outras testemunhas, não consegue identificar como sendo a assaltante por causa dos disfarces. Agarra na mala que coloca ao colo e ali fica, até ao final da sessão, como que para se certificar de que Dulce volta para a prisão algemada e escoltada pelos dois polícias que aguardam na sala. Mal a vê sair, o rosto de Cláudia descontrai.

A “Tia”

Passam quatro meses sem que a mulher volte a assaltar. Até que no dia 25 de Agosto de 2011, às 13h22, na dependência do Montepio Geral, na Parede, há nova investida. Óculos escuros, boné a esconder um cabelo loiro com ar artificial, túnica preta e calças de ganga. Arma no balcão, à frente de Ana Santos, a funcionária que lhe entrega 150 euros e um saco com alguns dólares. Tudo somado, cerca de 300 euros.

A partir daqui, a actividade aumenta. Assalta duas vezes em Setembro, no bairro do Restelo, em Lisboa, e em Oeiras (juntou nestes dois assaltos mais de três mil e quinhentos euros). Sandra Bento estava grávida de cinco meses quando às duas da tarde uma cliente toca à campainha para que lhe abra a porta do banco. Dulce dirige-se ao balcão, pousa o revólver preto, cobre-o com uma écharpe e anuncia que está a fazer um assalto. Levou quase 1500 euros. Sandra Bento prestou testemunho por videoconferência.

Dois dias depois do Natal de 2011, saiu do Banif de Carnaxide com 110 euros apenas. Antes de se afastar do balcão, Dulce Caroço perguntava sempre se não havia mais dinheiro. Quando lhe ofereciam moedas recusava.

Em oito meses a PJ contabilizou cinco assaltos que, tudo indicava, tinham sido praticados pela mesma pessoa. Uma mulher, uma arma, vários disfarces. Na Polícia Judiciária a busca à criminosa tornava-se difícil. Não só é raríssimo encontrar uma mulher a assaltar bancos, ainda mais raro é essa mulher actuar sozinha. “As mulheres aparecem normalmente como cúmplices neste tipo de crimes, e mesmo assim são muito poucos os casos. Habitualmente os assaltantes de bancos são homens e pessoas que já têm cadastro, porque ninguém começa pelos bancos. Começam por assaltar pessoas na rua, depois lojas, eventualmente gasolineiras e só depois chegam aos bancos”, explica fonte da PJ.

Dulce Caroço era portanto um caso singular. “Uma mulher sozinha a assaltar bancos, sem ter problemas de alcoolismo ou toxicodependência, ou seja, sem estar num estado limite, em Lisboa e arredores, esta foi a única”, sabe agora a PJ. Porque na altura, apareceu em Coimbra outra criminosa que veio baralhar ainda mais a investigação, já de si difícil. “Houve um assalto na zona centro e pensávamos que era mesma. Só quando essa mulher foi detida e em Lisboa os assaltos continuaram é que percebemos que não era”, conta a mesma fonte.

Os alertas chegam à Polícia Judiciária dez a quinze minutos depois do crime consumado. Começa então a recolha de provas. Vêem-se as filmagens, fala-se com os funcionários e com mais alguém que tenha visto o assaltante. Todos os pormenores contam. Os inspectores fazem o trabalho de casa, na esperança de que, na hora em que o criminoso cometa um erro, às autoridades baste encaixar a peça que faltava no enorme puzzle que foram montando naquela parede. Enquanto isso, no terreno, procuravam-se mulheres já cadastradas. Todas as pistas iam, contudo, caindo por terra. Nenhuma daquelas suspeitas correspondia à “Tia”, assim era conhecida no meio policial a senhora bem vestida que andava a assaltar bancos na linha de Cascais e na capital.

Para baralhar ainda mais o caso, Dulce Caroço esteve cinco meses parada, sem cometer qualquer assalto. “Isto coincidiu com a detenção em Espanha da Sara Norte e até chegámos a pensar que podia ser ela”, diz a sorrir fonte ligada à investigação. Entre Janeiro e Maio de 2012 nada de Viúvas Negras ou Tias a assaltar bancos. Mas a polícia não parou. Sabia que se tratava de uma pessoa que gostava de se cuidar, bem tratada, usava roupas de marca, e como andava a pé haveria de viver relativamente perto das zonas onde os crimes eram praticados. Os investigadores correram tudo à procura de dívidas por saldar em lojas, shoppings, casinos e nada. Não havia mulher por ali com problemas financeiros que correspondesse aos fotogramas que continuavam a acumular-se na parede da sala de investigação.

O regresso

Era Ana Marta que estava ao balcão do Deutsche Bank da Parede no dia 1 de Junho de 2012, às nove da manhã. “Vi uma mulher entrar e achei logo que ela estava demasiado tapada para aquela altura do ano, mas estava ocupada a fazer alguma coisa na caixa e quando voltei a levantar a cabeça vi uma arma apontada na minha direcção. De forma calma e segura aquela mulher virou-se para mim e disse: ´Dá-me todo o dinheiro, já’. Eu tinha acabado de receber 340 euros do cliente anterior e passei-lhe esse dinheiro. Ela manteve sempre o cano da arma à mostra e saiu apressadamente, porque creio que se apercebeu de que o director estava desconfiado dela”, contou Ana ao colectivo de juízes. Durante duas semanas, Ana não conseguiu ir trabalhar. Qualquer barulho a punha em sobressalto e qualquer pessoa que se dirigia ao balcão do banco lhe causava medo. “Tive de procurar ajuda médica”, confessou ao tribunal.

Na Polícia Judiciária não causou grande estranheza esta paragem prolongada da actividade criminosa de Dulce Caroço. “É comum acontecer, quando por exemplo algo corre mal e os assaltantes ficam nervosos durante um tempo”, afirma um elemento da PJ. No caso de Dulce, o motivo foi apenas não estar a precisar de dinheiro. A pausa nos assaltos coincidiu com o facto de ter arranjado um trabalho que se manteve por pouco tempo. Voltou por isso a assaltar. Fê-lo ainda no mês de Junho, no Barclays em Oeiras - foi o segundo assalto mais proveitoso, que lhe rendeu 2 755 euros -, duas vezes em Agosto, em Paço de Arcos e Oeiras, e outra em Setembro, no Estoril.

Nesta altura, na parede da PJ, já era bem grande o espaço reservado aos assaltos da “Viúva Negra” ou da “Tia”. “Tínhamos tudo preparado para lhe fazer o fato à medida. Todo o trabalho de casa tinha sido realizado, restava-nos esperar que ela cometesse um erro”, salienta a mesma fonte.

Dulce Caroço cometeu mais que um. No dia 30 de Outubro o assalto ao Barclays em Oeiras tinha rendido 300 euros. A conta de Dulce Caroço já ia em 15 800 euros roubados aos bancos no espaço de um ano e meio. A 31 de Outubro, 24 horas depois do último assalto, decidiu fazer nova investida, desta vez numa dependência do Banif em Lisboa.

Eram 13h40 quando entrou no banco, como sempre fazia. Peruca, lenço a cobrir a cabeça, óculos escuros, uma mala a tiracolo. Chegada ao balcão, ameaçando a funcionária com a arma de fogo falsa, é confrontada com o facto de não haver notas, apenas moedas na caixa. Perante esta situação, Dulce desiste do assalto e começa a dirigir-se para a porta quando dois funcionários do sexo masculino a agarram. Desrespeitando todos os protocolos dos bancos, que recomendam que os funcionários nunca ofereçam resistência, estes dois homens, um deles apercebendo-se que a arma não era verdadeira, apanharam a “Viúva Negra” em flagrante delito e entregaram-na às autoridades. A partir daqui, foi fácil ligá-la aos restantes assaltos. Tinha cometido erros de principiante, como utilizar diversas vezes as mesmas peças de roupa (quando foi apanhada foi fácil identificar o mesmo lenço que tinha usado no dia anterior, os mesmos óculos, a mesma peruca, a mesma arma) e, pior ainda, guardou tudo em casa. Quando a policia foi fazer buscas à sua residência encontrou tudo o que procurava, ou seja, todos os objectos que ligavam aquela mulher aos onze assaltos anteriores. Estava fechado o puzzle e desvendado o mistério.

Dulce Caroço contou tudo à PJ. Contou que tinha sido ela a praticar os assaltos. Contou que era cabeleireira, que mais tarde abriu um gabinete de estética e que tudo começou a correr mal. A contabilidade não batia certo, as dívidas ao fisco acumulavam-se e para que tudo ficasse ainda pior, a relação que mantinha com o companheiro tinha terminado de forma pouco pacífica. Tinha um filho de sete anos para criar e estava sem dinheiro na conta. Dulce Caroço era, naquele momento, aos olhos dos investigadores, a excepção que confirmava todas as regras que definem o perfil dos assaltantes de bancos. Sem experiência, sem cadastro, uma simples mulher de classe média, mãe, a braços com uma pesada situação financeira e um desgosto de amor.

Na segunda sessão do julgamento, Dulce Caroço chora. Traz a mesma roupa que escolheu para o primeiro dia em que foi presente a tribunal. O cabelo arruivado, com caracóis pouco cuidados, apanhado numa mola, camisa branca, casaco cintado e calças pretas. Um lenço de papel na mão que vai usando para limpar as lágrimas. Dulce está presa preventivamente há quase um ano no Estabelecimento Prisional de Tires, em Cascais. Trabalha nas oficinas há pouco tempo, mas desde que entrou que faz voluntariado. Tem visitas da mãe, do filho, dos irmãos e dos primos. A procuradora do Ministério Público faz as alegações finais e pede pena de prisão efectiva para a arguida.

- Quer dizer alguma coisa em sua defesa? – pergunta a juíza.

- Não – responde Dulce.

A sentença fica marcada para o dia quatro de Novembro às 14 horas. Dulce está com os olhos inchados. Levanta-se e dirige-se à polícia que a espera com as algemas prontas. Coloca as mãos atrás das costas e baixa a cabeça. Uma prima, que assistiu à sessão, emociona-se ao vê-la passar escoltada por dois polícias. Tentam um abraço, mas com as mãos presas restou a Dulce dar à prima um sorriso e algum conforto: “Vai ficar tudo bem.”