A arte de gritar, enganar e negociar por uma cobrança difícil

De telefonema em telefonema, Joana só tem um objectivo: “Arrancar o dinheiro às pessoas.” Ao início custou-lhe ouvir as histórias de pessoas afogadas em dívidas. Mas depois tudo passou. Ao fim de quatro anos, Joana admite: “Perdi a sensibilidade.” A empresa em que trabalha multiplicou o número de funcionários nos últimos quatro anos e vai expandir-se para o exterior.

João de Almeida Dias

Maio 2014

Joana pegou no telefone e marcou o número de uma reformada com pouco mais de 60 anos e esperou que esta atendesse. O motivo da chamada era o mesmo de sempre: “Arrancar o dinheiro à pessoa.” Naquele caso em concreto, tratava-se uma dívida de seis mil euros contraída pela aposentada na sequência de um empréstimo bancário. Quando ouviu o “está lá?” do outro lado do telefone, Joana não teria como adivinhar que aquela seria a conversa mais longa da sua carreira de gestora de dívida.

Falaram durante duas horas.

“Ela ficou nervosa assim que eu lhe disse que o banco dela tinha pedido à nossa empresa para gerir a dívida dela. Parece que ficou em pânico e achou que conseguia esquivar-se se começasse a desconversar. Começava numa história e acabava noutra, e eram sempre desgraças da vida dela. Contou-me que nunca conseguiu ter filhos, que isso a deixava muito triste. Depois disse-me que quando era criança a mãe desprezava-a e que os carinhos iam todos para o irmão dela. E falou-me montes de vezes do advogado dela, dizia que ele a tinha drogado e violado.”

A “cliente” repetia cada uma destas histórias, acrescentando-lhes sempre novos pormenores. Impaciente, Joana tentou interrompê-la antes que ela as retomasse. “Tudo bem, já ouvi, mas eu estou a ligar-lhe para falarmos da sua dívida, não pense que se esquiva.” Sem sucesso. “Minha senhora, cale-se.” Efeito contrário: a “cliente”, como são designados os devedores, passou a falar mais alto, puxando pela sua voz estridente num tom inquieto. “Cale-se!”, repetiu Joana, desta vez com a voz elevada, não querendo ficar para trás. A reformada continuou a falar e a gestora de dívida, por cima, começou a dizer-lhe “cale-se!, cale-se!, cale-se!” a um ritmo frenético, como quem repete à exaustão um trava-línguas já superado. “Você não me fale assim, ainda vou ter um ataque de coração por sua culpa! Já estou a sangrar do nariz por causa de si!”. Desesperada, Joana foi ao limite e berrou para o microfone do seu headset: “EPÁ, CAAAAAAALE-SE!”. Naquele momento, os 60 colegas que trabalham na mesma sala suspenderam as suas cobranças telefónicas. Olhavam-na espantados, mas reconheciam o que se estava a passar: era a primeira vez que Joana perdia a compostura com um cliente. Mais do que surpreendente, era normal, e esboçaram sorrisos cúmplices de como quem diz “és cá dos nossos”.

Com os ânimos acalmados, Joana conseguiu chegar onde queria. Após avaliar a situação da cliente, negociou com ela uma modalidade de pagamento da dívida. A reformada aceitou reembolsar os 6 mil euros que tinha em dívida com o banco, a custo e sob ameaça de uma acção legal. Ainda hoje, sem falta, desembolsa 100 euros a cada mês que passa.

Há quatro anos, quando entrou para esta profissão, Joana nem sabia o que era um gestor de dívida. Tinha 22 anos e ficou desempregada depois de se ter demitido de uma empresa da área da comunicação, na qual se licenciou. Tinha vários salários em atraso e por isso bateu com a porta. A partir daí ganhou o hábito de abrir os jornais directamente na página dos classificados, onde apontava qualquer oferta de trabalho. Por isso, quando viu que uma empresa pedia “gestores de dívida” não pensou duas vezes e enviou o currículo. Dias depois, foi chamada para uma entrevista de emprego.

“Não fazia ideia nenhuma daquilo ao que ia. Perguntaram-me se tinha experiência na banca, se tinha algum conhecimento de Direito e se tinha experiência a trabalhar por telefone. Bem, eu nunca tinha trabalhado num banco e o único contacto que tive com Direito foi numa cadeira da faculdade, que ainda por cima foi a única em que tive negativa. Então disse que não às duas primeiras perguntas. E também nunca tinha trabalhado por telefone, nem num call-center, ou nada parecido, mas como falo ao telefone, como qualquer pessoa… pronto, disse que sim a essa, só para parecer melhor.”

©osomeafuriaTrabalho à comissão

Quando ainda estava no escuro, sem saber para que emprego se tinha candidatado, foi-lhe explicado ao pormenor o modus operandi da empresa – uma das maiores no mercado das cobranças difíceis, servindo alguns dos bancos e linhas de créditos mais conhecidos no país.

As regras do jogo eram simples. Inicialmente, os devedores são contactados em “campanhas de mensagens [de telemóvel]”, por vezes também por carta. O cliente é sempre informado, num tom seco, directo e não personalizado, de que a gestão da sua dívida com determinada entidade passou a ser feita por aquela empresa e de que em breve será feito um contacto telefónico para encontrar uma solução de pagamento. Depois, aquando do telefonema, tudo varia consoante o estilo do cobrador. Há aqueles que ambicionam o pagamento total da dívida, intimidando o cliente sem outro critério além do da persistência, até aos que, mais diplomáticos, tentam arranjar um acordo de meio termo, em que o devedor paga apenas uma fatia do bolo. Em todo o caso, é importante não ofendê-lo nem pressioná-lo com chamada atrás de chamada. Aqueles que o fazem – e não são poucos – arriscam a que o cliente apresente queixa à entidade reguladora desta actividade, o Banco de Portugal. É importante não ofender o devedor. Em casos extremos, explicaram a Joana, os insultos não devem ultrapassar os epítetos “caloteiro” e semelhantes.

Disseram-lhe que trabalharia numa das várias equipas que existem na empresa. Todas elas têm o objectivo máximo de garantir que as dívidas são cobradas. O seu salário começaria nos 650 euros, aos quais seriam acrescidos 0,02€ por cada euro que conseguisse resgatar. Por cima disso, poderia ainda ganhar um bónus de 150 euros se todos os membros da sua equipa conseguissem tratar com sucesso pelo menos 75% das carteiras de clientes que lhes fossem atribuídas.

As agruras dos outros

Depois de uma formação que passou por simulações de casos, exames feitos pelos mais altos cargos da empresa e 15 dias à experiência, Joana assinou o seu primeiro contrato, com três meses de duração.

Os primeiros dias em que colocou o headset na cabeça não foram fáceis. “Ficas ali oito horas, todos os dias, a ouvir pessoas a falarem da vida delas… São histórias que não lembra a ninguém. E depois chegas a casa e não consegues esquecer as conversas que tiveste.” Ainda hoje se lembra de quando ligou para uma casa onde lhe atendeu a mãe de uma cliente. “A minha filha não está cá e não vem cá há muitos anos, ela fugiu para o Brasil, e deixou-me as dívidas todas. Já pedi para não me ligarem mais!”, respondeu a Joana. Que foi surpreendida quando, do outro lado da linha, surgiu a filha da devedora: “Olha, eu tenho dez anos, e sabes uma coisa? A minha mãe abandonou-me quando eu era pequenina. Por causa disso nunca a conheci, nunca me desejou um feliz Natal, nem nunca tive um beijinho de parabéns. E vocês andam sempre a ligar para aqui a pedir dinheiro. E sabem que nós não temos como pagar isso.” Joana, quase sem se mexer e em pânico, só conseguiu balbuciar: “Passa o telefone à tua avó, se faz favor.” A criança recusou e desligou-lhe o telefone na cara. Já passaram quatro anos e Joana ainda acusa o peso deste caso quando pensa nele. Na altura, não conseguia deixá-lo à porta de casa e pensava nele noite fora. “Ao início nós não conseguimos esquecer as histórias, são muitas coisas ao mesmo tempo, ficamos com a cabeça cheia.”

Do grupo de 12 pessoas que entrou na empresa juntamente com Joana, só três continuam por lá. Os outros nove saíram logo nas primeiras semanas de trabalho – a maioria por falta de vocação, outros por esgotamento nervoso.

Hoje em dia, Joana está nos quadros da empresa. Quando começou era uma das pessoas mais novas e inexperientes da equipa, mas mesmo assim destacava-se. Ao princípio era tímida nos seus telefonemas a devedores, mas cedo passou a mostrar resultados. Actualmente factura entre 1000 a 2000 euros no final de cada mês. “Às tantas tu já sabes que estás lá com um objectivo e esqueces tudo o resto. Tu estás ali é para cobrar dinheiro. Já não és tão sensível às desculpas das pessoas, fartas-te mesmo. Nessa fase já começamos a ter resposta para tudo. Se as pessoas dizem que não têm dinheiro, nós dizemos ‘vá pedir a amigos, à família, vá pedir a qualquer lado’. Se nos dizem que é por causa da crise, nós respondemos que ‘a crise está cá para todos’. Depois também há aqueles que nos perguntam se queremos que eles vão roubar para pagar as dívidas deles. Nós a isso costumamos responder-lhes ‘você acha que o banco andou a roubar o dinheiro que lhe emprestou, é?’. E já nos irritamos com as pessoas, mesmo. Às vezes parece que são parvas. Porque é que compram um Audi cheio de extras se não têm como pagá-lo?! Irrita-nos. Por isso, não demora muito até chegarmos a um ponto em que esquecemos tudo o resto e já só pensamos em ganhar o nosso ordenado no final de cada mês. E para isso há duas coisas a fazer: arrancar dinheiro às pessoas e atingir o objectivo.”

Joana está numa equipa de nove cobradores. Os salários dentro do grupo variam de membro para membro, oscilando entre os 650 e os 3 mil euros mensais. Sentados numa mesa rectangular, com o team leader na cabeceira, é frequente provocarem-se uns aos outros meio a brincar, meio a sério. “Toma! Já tenho mais dinheiro do que tu! Olha para ti, não fazes nada…” A obsessão é tal que raramente falam de outro assunto que não tenha a ver com dinheiro. Nem as refeições escapam. Desde o almoço rotineiro, em que se comem os restos requentados do jantar do dia anterior num tupperware pousado na copa do escritório, até ao jantar mensal de convívio, feito num restaurante, o dinheiro não é tabu. É pano de fundo. Nestas conversas, cada um vigia o próximo, tentando atingir o equilíbrio perfeito entre a concorrência e a cooperação.

Porém, a competição é ainda maior quando se trata das outras equipas do escritório. “Aí a minha equipa é implacável, nós não deixamos que ninguém entre no nosso quintal.” Para esta trupe, seria uma tragédia que qualquer outra do escritório se apercebesse e apoderasse dos truques por eles utilizados e aperfeiçoados na arte de cobrar dinheiro a todo o custo.

“Partir um cliente”

Um colega de Joana, conhecido por ser implacável com os clientes, tem uma técnica de eleição. Pedro avisa os seus colegas sempre que vai “partir um cliente”. Foi isso mesmo que fez quando viu que tinha de ligar a uma cliente com mais 70 anos, residente no Interior do país, que devia nove mil euros a um banco. Escolheu deliberadamente mentir à devedora, inventando um enredo que tinha tanto de falso como de eficaz. “Mentiu-lhe e disse-lhe que estava a ligar de uma empresa de recolha de bens. Disse que só estava a ligar para confirmar a morada da senhora, porque tinham ordem para irem lá no dia seguinte buscar coisas a casa por causa de uma dívida que ela e o marido tinham num banco. Isto foi só para assustá-la. Ela começou logo a chorar, a implorar para não lhe levarem nada”, recorda Joana, que ouviu esta conversa enquanto ela acontecia. “A verdade é que no dia seguinte ligaram ao meu colega do banco da terra onde vive esta senhora. Ligaram para dizer que estavam muito satisfeitos e também surpreendidos. Disseram: ‘Eu não sei o que é que vocês lhe disseram, mas ela apareceu aqui no banco com o marido, vinham os dois a chorar, mas pagaram os nove mil euros logo de uma assentada!’”.

Joana recorda-se também da vez em que teve em mãos o caso de um futebolista de uma equipa que costuma estar no fundo da Liga Zon Sagres. Por não ter o número de telemóvel do jogador, Joana ligou para o centro de treinos da equipa em hora oportuna e pediu para falar com o mesmo.

Joana – “Olá, não sei se sabes quem é que está a falar…”

Futebolista – “Não…”

Joana – “Sou aquela miúda que te vai ver aos treinos.”

Futebolista – “Quem?”

Joana – “Aquela loira, costumo estar sempre na bancada, vou de propósito só para te ver… Eu estou a ligar-te porque queria ficar com o teu número de telemóvel.”

Futebolista – “Para quê?”

Joana – “Porque gostava de te conhecer melhor, acho-te muito giro e muito bom jogador. Dás-mo?”

Futebolista – “Tudo bem, aponta aí. 9…”

Pouco tempo depois, o atleta recebeu uma chamada para falar das suas dívidas.

“Não tens vergonha do teu trabalho?”

Mas nem só de jogadores de futebol aspirantes a um estilo de vida desafogado consistem as carteiras de devedores que vão parar às mãos de Joana e da sua empresa. A lista é diversa: empresários, beneficiários do Rendimento Social de Inserção, desempregados, reformados, famílias a viver de um ou dois salários mínimos, etc. “Há ali casos em que as coisas correram mesmo mal. Empresas que faliram do nada, pessoas que perderam o emprego, outras que só têm uma dívida e que, de repente, por alguma razão, deixaram de poder pagá-la…”, inicia Joana, para depois contrapor: “Mas depois também há pessoas que têm dívidas em todo o lado, são mesmo caloteiros. Há quem tenha dívidas em todas as empresas com que trabalhamos [são pelo menos sete].”

Desde que começou a crise, a empresa de Joana ainda não parou de crescer. Quando entrou, a agência tinha cerca de 50 a 60 funcionários e funcionava a partir de um escritório de média dimensão. Quatro anos depois, em que as economias de muitos definharam à medida que o desemprego e a crise se alastraram, esta empresa está num autêntico contraciclo em relação ao resto do país. Trabalham ao todo com 400 funcionários e a morada foi transferida para um dos centros de escritórios mais cobiçados de Lisboa – e já existe um plano de expansão para Espanha, Angola e Brasil.

Longe vão os tempos em que Joana chegava a casa ao fim de um dia de trabalho com sentimento de culpa. Agora, sublinha repetidamente: “Depois deste tempo todo já perdi a sensibilidade.” Por vezes a avó zanga-se com ela e diz-lhe: “Eu não sei como é que tu és capaz de fazer isso às pessoas. Não tens vergonha do teu trabalho? É desumano!”. “As pessoas endividam-se e depois não pagam, avó, muito deles são uns caloteiros da pior espécie, avó”, responde-lhe a neta.

Aos 26 anos, vive sozinha, fora da casa dos pais, dos quais já não depende financeiramente. No final do dia, só tem um receio: ter de fazer um crédito. “Eu sei bem como é e stresso muito com isso, mesmo. Eu sei que estou efectiva na empresa, mas também sei que basta um dia para tudo acabar. Dou por mim a pensar muitas vezes: ‘O que é que seria de mim? Ia pedir dinheiro aos meus pais?’. Não queria nada receber um telefonema igual àqueles que eu faço.”

Os nomes utilizados nesta reportagem são fictícios.